sábado, 5 de abril de 2014

Manuel de Castro - Jorge de Sena



LENDO UMA REFERÊNCIA À MORTE DE MANUEL DE CASTRO

Manuel de Castro, 1934 - 12 de Setembro de 1971

Por acaso descubro que este jovem poeta
morreu. Jovem? Já não o seria,
mas é assim que o vejo daquele tempo
em que ele era já protestatário
e ser protestatário não era ainda maneira
de triunfar na vida. Não faço ideia alguma,
e nada importa, que terá escrito ou dito
de mim nestes anos de não saber mais dele.
Nem nada sei das voltas que lhe deu a vida.
Suponho que morreu de doença, de desordem,
miséria talvez, raivosa fúria dia a dia traída
mesmo na roda habitual à mesa de café,
onde um falso calor dar-lhe-ia sobrevida.
Tem sido sempre assim por estas décadas:
morrem os melhores sem bem realizar-se,
e sobra quem se realiza nos cadáveres
que vivos não salvou. E sobram, são os chefes,
têm corte, amantes que lhes pagam ou eles pagam,
e críticos de artigo semanal em coro de louvor.
E aqueles são quem morre – de tudo e de estar vivo,
e servirão de lacrimejo luso
até já nem valerem para ser lembrados
pelos que mereciam ser esquecidos.
E quem não esteja lá, se limpo de assassino,
só pode recordar os olhos do poeta,
a boca retorcida de amargura à espreita,
e os gestos sacudidos com que não falava
senão de alguma esperança e de poesia.



Jorge de Sena,
Conheço o sal… e outros poemas, 1974

sexta-feira, 4 de abril de 2014

ESSES - Luísa Ducla Soares

Luísa Ducla Soares
ESSES

Os que trazem a tarde
a estrebuchar rosas,
pela trela,
e põem rosas nas janelas,
nos sorrisos que nos dão.

Os que amassam flores
no  pão dos pobres

Os que mascaram de rosas
o não

Os que aos Domingos
dão às crianças
um tostão

Os que têm ninhos
de andorinhas
nos beirais
e chicotes
nos dedos,
sub-reptícias gestapos caiadas
do livor
dos degredos

Os que roubam estrelas
aos olhos da gente
para vendê-las
à socapa

Os que instalam
alto-falantes de riso
na mágoa salina
das costas curvadas,
no grito preciso
das raivas sangradas

Os que nos matam de rosas
às punhaladas.

Luísa Ducla Soare

quinta-feira, 3 de abril de 2014

Ar Livre - Miguel Torga

Ar Livre
Ar livre que não respiro!
Ou são pela asfixia?
Miséria de cobardia
Que não arromba a janela
Da sala onde a fantasia
Estiola e fica amarela!
Ar livre, digo-vos eu!
Ou estamos nalgum museu
De manequins de cartão?
Abaixo! E ninguém se importe!
Antes o caos que a morte...
De par em par, pois então?!
Ar livre! Correntes de ar
Por toda a casa empestada!
(Vendavais na terra inteira,
A própria dor arejada,
- E nós nesta borralheira
De estufa calafetada!)
Ar livre! Que ninguém canta
Ar livre! Que ninguém canta
Com a corda na garganta,
Tolhido da inspiração!
Fora do ventre da mãe
Desligado do cordão!
Ar livre, sem restrições!
Ou há pulmões,
Ou não há!
Fechem as outras riquezas
Mas tenham fartas as mesas
Do ar que a vida nos dá!
     Miguel Torga
in "Cântico do Homem"

quarta-feira, 2 de abril de 2014

Che Guevara - Sophia de Mello Breyner Andresen



Che Guevara

Contra ti se ergueu a prudência dos inteligentes e o arrojo dos patetas
A indecisão dos complicados e o primarismo
Daqueles que confundem revolução com desforra

De poster em poster a tua imagem paira na sociedade de consumo
Como o Cristo em sangue paira no alheamento ordenado das Igrejas

Porém
Em frente do teu rosto
Medita o adolescente à noite no seu quarto
Quando procura emergir de um mundo que apodrece.
Sophia de Mello Breyner Andresen

terça-feira, 1 de abril de 2014

Góia - Andreï Voznessenski





Eu - Goya
a quem o inimigo alcançou junto à cratera
em voo na direção do campo perdido.

Eu - O Desgosto.

Eu - garganta da guerra,
nas principais cidades
no Inverno de 1941.

Eu - A Fome.

Eu - o pescoço
da mulher enforcada cujo corpo balouça
como um sino na praça vazia.

Eu - Goya.

Ó uvas da punição!
Apontei, viril, para Ocidente -
sou as cinzas de quem não foi convidado!
Nas tábuas do céu preguei estrelas duras -
duras como pregos.

Eu - Goya.
Andrei Voznessenski
Antimundos, Cadernos de Poesia 12
Tradução de Clara Schwarz da Silva,
Versão de Armando da Silva Carvalho,
Publicações Dom Quixote, 1970.
 

((OUTRA VERSÃO) 

Góia

Sou Góia!
Arrancou-me o inimigo as furadas órbitas em voo para o campo nu.
Sou horror.
Sou grito.
 Da guerra, do carvão das cidades na neve do ano quarenta e um.
Sou fome.
Sou garganta
De mulher enforcada cujo corpo, como um sino, tangia na praça nua...
Sou Góia! Ó cachos
Da represália! Em descarga voo para o ocidente, eu cinza de inesperado visitante!
E na memoria do céu sólidas estrelas cravo Como cravos.
Sou Góia.

Andreï Voznessenski
José Sampaio Marinho