Da Profissão do Poeta
Da
identificação profissional
     
Operário do canto, me apresento
     
sem marca ou cicatriz, limpas as mãos,
     
minha alma limpa, a face descoberta,
     
aberto o peito, e — expresso documento —
     
a palavra conforme o pensamento.
Do
contrato de trabalho
     
Fui chamado a cantar e para tanto
     
há um mar de som no búzio do meu canto.
     
Embora a dor ilhada ou coletiva
     
me doa, antes celebro as coisas belas
     
que movem o sol e as demais estrelas
    
— antigos temas que parecem novos
    
e tão gratos ao meu e aos outros povos.
Da
relação com vários ofícios
     
Meu verso tine como prata boa
     
pesando na confiança dos bancários;
     
os empregados no comércio bem
     
sabem como atender aos que encomendo
     
e recomendo mais do que ninguém;
     
aos que funcionam em telefonia
     
com ou sem fio, rádio, a esses também
     
sei dizer à distância ou de mais perto
     
a cifra e o texto no minuto certo;
     
para os músicos profissionais,
     
sem castigar o timbre das palavras
     
modulo frases quase musicais;
     
para os operadores de cinema
     
meu verso é filme bom que a luz não queima;
     
trilho também as estradas de ferro
     
e chego ao coração dos ferroviários
     
como um trem sempre exato nos horários;
     
às equipagens das embarcações
     
de mares ou de lagos ou de rios
     
meu verso fala doce e grave como
     
doce e grave é a taboca dos navios;
     
nos frigoríficos derrete o gelo
     
da apatia, se é para derretê-lo,
     
meu canto a circular nas serpentinas;
     
à boca da escotilha ou nas esquinas
     
do cais, o meu recado é força viva
     
guindando a atenção dos homens da estiva;
     
desço cantando aos subsolos e às minas
   
  onde outros operários desenterram
     
o minério de suas artérias finas;
     
a outros, que dão sua têmpera aos metais,
     
meu canto ajuda feito um sopro a mais
     
aflando o fogo em flâmulas vermelhas;
     
aos colegas que lidam nos jornais
     
boas noticias dou e, mais do que isso,
     
jeito de as repetir e divulgar
     
quando o patrão quisera ser omisso;
     
à gente miúda, pronta a ser maior,
     
passo lições de um magistério puro
     
e o que é dever escrevo a giz no muro;
     
para os químicos sei fórmulas novas
     
que os mártires elaboram nas covas…
     
e a todos que trabalham vai assim
     
meu canto sugerindo meio e fim.
Do
horário do trabalho
     
Marcadas as minhas horas de ofício,
     
de dia em sombras pelo chão e à noite
     
no rútilo diagrama das estrelas,
     
só quem ama o trabalho sabe vê-las.
Dos
períodos de descanso
     
Seja domingo ou dia de semana,
     
mais do que as horas neutras do repouso
     
confortam-me os encargos rotineiros;
     
meu descanso é confiar nos companheiros.
Do
direito a férias
     
Nunca me participam por escrito
     
ou verbalmente os ócios que mereço
     
mas sempre gozo bem o merecido:
     
pois o ócio não é ofício pelo avesso?
     
É quando fio o verso; depois teço.
Da
remuneração das férias
     
Em férias tenho a paga de saber
     
lembrado o verso meu por quem o inspira;
     
é como se outra mão tangesse a lira.
Do
salário mínimo
     
Laborando entro os pontos cardinais,
     
de norte a sul, de leste a oeste, vou
     
cobrando aqui e ali quanto me basta:
     
o privilégio de seguir cantando.
     
(Imposto é cuidar onde e como e quando.)
Do
expediente noturno
     
Trabalho à noite e sem revezamentos.
      Se
há mais quem cante, cantaremos juntos;
     
sem se tornar com isso menos pura
     
a voz sobe uma oitava na mistura.
Da
segurança do trabalho
      
Mesmo no escuro, canto. Ao vento e à chuva,
       canto.
Perigo à vista, canto sempre;
      
e é clara luz e um ar nunca viciado
      
e sol no inverno e fresca no verão,
      
meu canto, e sabe a flores se é de flores
      
e a frutos se é de frutos a estação.
      
Só não me esforço à luz artificial
     
com que a má fé de alguns aos mais deslumbra
     
servindo-lhes por luz o que é penumbra;
     
também quando o ar parece rarefeito
      a
lira engasga, o verso perde o jeito.
Da
higiene do trabalho
     
Não canto onde não seja o sonho livre,
     
onde não haja ouvidos limpos e almas
     
afeitas a escutar sem preconceito.
     
Para enganar o tempo ou distrair
     
criaturas já de si tão mal atentas,
     
não canto…
     
Canto apenas quando dança,
     
nos olhos dos que me ouvem, a esperança.
Da
alteração de contrato etc.
     
Meu ofício é cantando revelar
     
a palavra que serve aos companheiros;
     
mas se preciso for calar o canto
     
e em fainas diferentes me aplicar
    
unindo a outros meu braço prevenido,
    
mais serviço que houver será servido.

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