terça-feira, 7 de janeiro de 2025
sexta-feira, 3 de janeiro de 2025
Ilse Losa - Fonte
Fonte
SE me perguntardes: Onde bebeste?
Responderei:
Bebi em rios que arrastam lodo,
Arame farpado e sangue.
Em rios que reflectem céus negros,
Lágrimas de tortura, destruição,
Ruínas, companheiros mortos,
Meninos e velhos a mendigar ternura...
Nestes rios bebi.
Mas depois vos direi:
Nos meus rios há também a Primavera,
Orvalho, música e laranjais,
Há violetas, andorinhas, céu azul,
Braços que erguem colunas e pontes,
Sorrisos de crianças e a palavra mãe.
E há um horizonte iluminado
Com a vitória duma manhã que irrompe.
Janeiro - 1952.
terça-feira, 31 de dezembro de 2024
CONTO TRISTE - ADÃO CRUZ
CONTO TRISTE
– UM BRAMIDO DE RAIVA
poema
Senti um frio arrepiante e um buraco negro nas entranhas, tão fundo como a silhueta daquele maldito comboio da inglória velocidade rebentando a dor, direito à morte que está em pé na berma do cais pela mão de uma criança. O pai, nos braços de um escombro deste mundo sem sol nem lua, destino bárbaro e cruel da perda total, de mão dada com o filho contra a majestade de um gélido cadafalso de ferro, parido pela força de um desumano progresso, contra o qual se esmagam os pobres e desamparados que vivem em contramão.
Meu menino sonâmbulo de olhos negros e pálida doçura quase luminosa, firme, terna, inocente, confiante na verdade desfeita em sangue pela mentira das mãos fatalistas de uma sociedade podre.
Podia ser um menino nascido no berço do lado, ao colo de um pai ou de um avô trabalhador-milionário, desiludido, porque a sua fortuna não havia atingido o limiar do absurdo, o que não deixava de ser triste, mas a vida filha da puta, meu menino pobre, nada mais te deu do que um pai sem nada, sem prendas sem força nem entre-actos que te enxergassem melhor sorte do que a morte.
O monstruoso comboio entra na tua boca a toda a brida, o ar louco sai em turbilhão do teu pequenino peito sem eco, a vida estilhaça-se em ruidoso estrondo e o teu corpo frágil cai em pedaços sobre os bonecos das tuas meias, no pavoroso silêncio dos teus olhitos redondos.
E o mundo continua como se nada tivesse acontecido.
Quando vi que eras tu o menino que estava no curto caminho da morte pela mão de um pai que não dominava a fome, e não tinha dinheiro para te comprar uma bola, um pai que não sorria nem cantava para ti porque a alma se perdeu na praça do medo com o sol congelado na boca, senti um bramido de raiva e uma louca vontade de pedir contas a Deus.
segunda-feira, 30 de dezembro de 2024
Ano Novo - Ferreira Gullar
Ano Novo
Meia noite. Fim
de um ano, início
de outro. Olho o céu:
nenhum indício.
Olho o céu:
o abismo vence o
olhar. O mesmo
espantoso silêncio
da Via-Láctea feito
um ectoplasma
sobre a minha cabeça:
nada ali indica
que um ano novo começa.
E não começa
nem no céu nem no chão
do planeta:
começa no coração.
Começa como a esperança
de vida melhor
que entre os astros
não se escuta
nem se vê
nem pode haver:
que isso é coisa de homem
esse bicho
estelar
que sonha
(e luta)
sexta-feira, 27 de dezembro de 2024
Tenta louvar o mundo mutilado - Adam Zagajewski
Tenta louvar o
mundo mutilado
Tenta louvar o mundo mutilado.
Recorda os longos dias de Junho
e os morangos silvestres, as gotas de vinho rosé.
As urtigas que cobrem metodicamente
as herdades abandonadas dos exilados.
Tens de louvar o mundo mutilado.
Observaste os iates elegantes e os navios;
um tinha uma longa viagem pela frente,
ao outro esperava-o apenas o nada salgado.
Viste os refugiados que caminhavam para lugar nenhum,
ouviste os carrascos que cantavam com alegria.
Deves louvar o mundo mutilado.
Recorda os momentos em que estiveram juntos
no quarto branco, as cortinas movendo-se.
Volta em pensamento ao concerto, quando a música eclodiu.
No Outono colheste bolotas no parque
e as folhas rodopiavam sobre as cicatrizes da terra.
Louva o mundo mutilado
e a pena cinzenta, perdida pelo tordo,
e a luz delicada, que erra e desaparece
regressa.
Adam Zagajewski
Tradução de
João Ferrão e Anna Kuśmierczyk
Try to Praise the Mutilated World
Try to praise the mutilated world.
Remember June’s long days,
and wild strawberries, drops of rosé wine.
The nettles that methodically overgrow
the abandoned homesteads of exiles.
You must praise the mutilated world.
You watched the stylish yachts and ships;
one of them had a long trip ahead of it,
while salty oblivion awaited others.
You’ve seen the refugees going nowhere,
you’ve heard the executioners sing joyfully.
You should praise the mutilated world.
Remember the moments when we were together
in a white room and the curtain fluttered.
Return in thought to the concert where music flared.
You gathered acorns in the park in autumn
and leaves eddied over the earth’s scars.
Praise the mutilated world
and the gray feather a thrush lost,
and the gentle light that strays and vanishes
and returns
terça-feira, 24 de dezembro de 2024
domingo, 22 de dezembro de 2024
Litania para o Natal de 1967 - David Mourão-Ferreira
Litania para o Natal
de 1967
Vai nascer esta noite à meia-noite em
ponto
num sótão num porão numa cave inundada
Vai nascer esta noite à meia-noite em ponto
dentro de um foguetão reduzido a sucata
Vai nascer esta noite à meia-noite em ponto
numa casa de Hanói ontem bombardeada
Vai
nascer esta noite à meia-noite em ponto
num presépio de lama e de sangue e de cisco
Vai nascer esta noite à meia-noite em ponto
para ter amanhã a suspeita que existe
Vai nascer esta noite à meia-noite em ponto
Tem no ano dois mil a idade de Cristo
Vai nascer esta noite à meia-noite em
ponto
Vê-lo-emos depois de chicote no templo
Vai nascer esta noite à meia-noite em ponto
e anda já um terror no látego do vento
Vai nascer esta noite à meia-noite em ponto
para nos vir pedir contas do nosso tempo
sexta-feira, 20 de dezembro de 2024
A paz sem vencedor e sem vencidos - Sophia de Mello Breyner Andresen
A
Dai-nos,
A
Dai-nos
A
Erguei o
Dai-nos
A
Fazei
Dai-nos a
Dai-nos a
Dai-nos a
Dai-nos
A
Sophia de Mello Breyner Andresen
quinta-feira, 19 de dezembro de 2024
Às pessoas comuns - Luís Neves
(desenho de Fernando Campos)
Dedico este livro às pessoas
comuns
As pessoas são comuns quando já não
querem ser outras.
As pessoas comuns só querem que não as
chateiem e mais nada.
As pessoas comuns não esperam a
esperança.
Ela espera sempre e nunca é esperada,
Ela faz-se adulta mas é sempre criança,
Ela é maior mas é sempre pequena,
Ela é amante antes de ser amada,
Ela é oficial e age como ordenança,
Ela é profissional e pagam-lhe como
amadora,
Ela é mestre e ouve como discente,
Ela é doutora e tratam-na como
paciente,
Ela é mãe sem deixar de ser filha.
Ele nunca é observador é sempre observado,
Ele nunca é escritor é sempre leitor,
Ele é o ator que atua na plateia.
Ele queria ser flor e foi sempre mato,
Ele queria ser poema e não passou de letra,
Ele não conseguiu ser fadista nem letra de fado,
Ele queria ser marinheiro e foi faroleiro,
Ele queria ser pastor e foi sempre ovelha,
Ele queria ser dono e foi sempre um animal,
Ele queria ser agricultor mas limitou-se a comer,
Ele nunca tratou da vinha e não lhe faltou de beber,
Ele queria ser eleito e foi sempre eleitor,
Ele queria um mundo melhor mas…
Ele queria ser outro e foi ele mesmo,
Ele queria ser rico e foi sempre
pobre,
Ele queria ser história e só teve
nome,
Ele queria ser herói e é
Ao meu herói:
O homem comum
Ele foi sempre limpo e não passou de
porco,
Ele queria ser lúcido e foi sempre
louco,
Ele queria ser muito e foi sempre
pouco,
Ele sonhava o futuro e só teve o
presente,
Ele queria viver para sempre e morreu,
Comumente
- Que é isso de vencer na vida, ó vós
incomuns!?
Luis Neves
segunda-feira, 16 de dezembro de 2024
Nikki Giovanni - Meu poema
Meu poema
eu tenho 25 anos
mulher negra poeta
escrevi um poema perguntando
preto você pode matar?
se eles me matarem
isso não vai parar
a revolução
eu fui roubada
me parece que eles sabiam
que eu ia ser atingida
eles levaram minha tv
meus dois anéis
minha pintura africana
e minhas duas armas
se eles tirarem minha vida
isso não vai parar
a revolução
meu telefone está grampeado
meu e-mail está aberto
eles me colocaram contra
todas as minhas velhas amizades
e contra todos os meus novos amantes
se eu odiar todas as pessoas negras
e todos os pretos,
isso não vai parar
a revolução
eu tenho medo de dizer
pra minha colega de quarto pra onde eu estou indo
e pavor de dizer
pras pessoas se eu vou mesmo
se eu me sentar aqui
pro resto
da minha vida
isso não vai parar a revolução
se eu nunca mais escrever nenhum
poema
ou conto
se eu reprovar
a graduação
se meu carro for apreendido
e meu toca-discos
não tocar
e se eu nunca vir
um dia de paz
ou tiver uma atitude preta significativa
isso não vai parar
a revolução
a revolução
está nas ruas
e se eu ficar
no 5º andar
ela vai continuar
se eu nunca fizer
nada
ela vai continuar
My poem
i am 25 years old
black female poet
wrote a poem asking
nigger can you kill
if they kill me
it won’t stop
the revolution
i have been robbed
it looked like they knew
that I was to be hit
they took my tv
my two rings
my piece of african print
and my two guns
if they take my life
it won’t stop
the revolution
my phone is tapped
my mail is opened
they’ve caused me to turn
on all my old friends
and all my new lovers
if i hate all black people
and all negroes
it won’t stop the revolution
i’m afraid to tell
my roommate where I’m going
and scared to tell
people if I’m coming
if i sit here
for the rest
of my life
it won’t stop
the revolution
if i never write
another poem
or short story
if i flunk out
of grad school
if my car is reclaimed
and my record player
won’t play
and if i never see
a peaceful day
or do a meaningful
black thing
it won’t stop
the revolution
the revolution
is in the streets
and if i stay on
the 5th floor
it will go on
if i never do
anything
it will go on
Publicado no livro Black Judgement (1968)
(Fonte: The Collected poetry of Nikki Giovanni 1968-1998, p. 86-87)
domingo, 15 de dezembro de 2024
AS TRÊS IRMÃS - Manuel Begonha
AS TRÊS IRMÃS
AMIGO
Aquele que te ajuda a dizer não, quando o mais fácil é
dizer sim
Aquele que te empresta o último dinheiro que tem no banco
Aquele que te abraça quando choras.
Aquele que te defende quando te vilipendiam
COMPANHEIRO
Aquele que entende as tuas utopias
Aquele que sobe contigo a montanha mais alta
Aquele que vai a teu lado e sabe estar calado
CAMARADA
Aquele que vai contigo defender a Pátria
Aquele que segue o teu caminho para um mundo novo
Aquele que detém a bala para te salvar a vida
quinta-feira, 12 de dezembro de 2024
OS POBREZINHOS - Armindo Mendes Carvalho (dito por Mário Viegas)
Ouvir aqui»»» Mário Viegas Armindo Mendes Carvalho
OS
POBREZINHOS
Os
pobrezinhos
tão
engraçados
pedem
esmolinha
com mil
cuidados
Todos
sujinhos
e tão
magrinhos
a linda
graça
dos
pobrezinhos
De porta em
porta
sempre
rotinhos
tão
delicados
os
pobrezinhos
Não façam
mal
aos
pobrezinhos
dêem-lhes
pão
e
tostõezinhos
Os
pobrezinhos
tão
engraçados
pedem
esmolinha
com mil
cuidados
quarta-feira, 4 de dezembro de 2024
HISTÓRIA ANTIGA (1937) - Miguel Torga
HISTÓRIA ANTIGA (1937)
Era uma vez, lá na Judeia, um rei.
Feio bicho, de resto:
Uma cara de burro sem cabresto
E duas grandes tranças.
A gente olhava, reparava e via
Que naquela figura não havia
Olhos de quem gosta de crianças.
E, na verdade, assim acontecia.
Porque um dia,
O malvado,
Só por ter o poder de quem é rei
Por não ter coração,
Sem mais nem menos,
Mandou matar quantos eram pequenos
Nas cidades e aldeias da Nação.
Mas,
Por acaso ou milagre aconteceu
Que, num burrinho pela areia fora,
Fugiu
Daquelas mãos de sangue um pequenito
Que o vivo sol da vida acarinhou;
E bastou
Esse palmo de sonho
Para encher o mundo de alegria;
Para crescer, ser Deus;
E meter no inferno o tal das tranças,
Só porque ele não gostava de crianças.
terça-feira, 3 de dezembro de 2024
sexta-feira, 29 de novembro de 2024
O ASSADOR DE CASTANHAS - ADÃO CRUZ
O ASSADOR DE CASTANHAS
O assador de castanhas
ali na esquina
da Praceta da Palestina
em serena prece à quietude universal
escreve no fumo branco e fugaz
que se funde no ar
a palavra PAZ.
Na canção do silêncio
ali na esquina
da Praceta da Palestina
ergue-se a voz de tanta gente
no fumo branco e fugaz
que se esvai pelo ar
gritando Palestina independente
queremos a PAZ.
O assador de castanhas
rasga as páginas amarelas
com milhares de nomes dentro delas
e embrulha as castanhas
numa dúzia de pessoas
entoando quentes e boas
no fumo branco e fugaz
que sobe no ar
com a palavra PAZ.
Talvez o nosso nome esteja lá
envolvendo as castanhas
ali na esquina
da Praceta da Palestina
e a consciência adormecida
de atrocidades tamanhas
a todos acorde a gritar
no fumo branco e fugaz
que se perde no ar
queremos a PAZ.
Neste caminho cruel
em que o mundo se perde
a cantar e a dançar
alheio a genocídios
e a toda a fome de matar
o assador de castanhas
ali na esquina
da Praceta da Palestina
em serena ode à quietude universal
escreve no fumo branco e fugaz
que se ergue no ar
a palavra PAZ.
In, A
Viagem dos Argonautas
segunda-feira, 25 de novembro de 2024
25 DE ABRIL DE 1974 - Amadeu Baptista
25 DE ABRIL DE
1974
A partir desse dia poderíamos
ter começado a aprender a crescer
e a desafiar os enigmas puríssimos da palavra liberdade - no auge da paisagem
a ave indócil a que não renunciámos
é um símbolo fortíssimo contra os símbolos precários, os malogros
antigos,
a fome a que nos querem condenados
sempre que a morte ronda e o exílio
dói
como um cravo recentemente apunhalado.
A partir desse dia poderíamos ter começado a aprender a enfrentar o medo
que durante tanto tempo nos manteve separados
sem que soubéssemos como e quando acabaria – na terra e no amor
brilham profundamente as lágrimas dos pobres
e o sangue é uma flor misteriosa
que floresce de súbito
quando um grito se ouve no deserto
e uma gaivota volta
para nos contactar.
A partir desse dia poderíamos ter começado a distribuir o coração
e a partir nesse barco em busca de límpidas aventuras
onde enfeitássemos a vida com sonhos realizáveis
e a solidão fosse completamente impossível – o silêncio abria-se
num manancial de palavras profundamente comovidas
[que nos enchiam de ternura
e nos aproximavam
dos incontáveis registos da fraternidade, a noite
era expulsa para sempre
e os braços davam-se e ardiam.
A partir desse dia poderíamos ter começado a aprender que a felicidade
é algo muito mais tangível do que o que nós pensávamos
se se constrói pedra a pedra e palmo e a palmo se conquista
quando uma vontade solar e a solidariedade
não deixam ninguém ficar desprevenido – o assombro
principia a exercer o seu poder admirável, chega como
uma chuva benigna com o perfil da paz, tem o odor
interminável
da alegria.
A partir desse dia poderíamos ter começado a aprender a conjugar um futuro
um pouco mais perfeito, a erguer
a cabeça, a defendermo-nos
das múltiplas armadilhas que o ódio arma –
[entrávamos pela manhã
ainda com maior vitalidade
e com um pouco do azul da primavera progredíamos
como um par de namorados:
a proliferante espontaneidade dos seus beijos
transformaria o mundo…
A partir desse dia poderíamos ter começado a aprender que a frescura
é um bem vertiginoso que é necessário preservar cada vez mais
e que não basta a um homem
o benefício das mãos limpas perante a enternecedora figura de esperança
quando os lobos são os mais acérrimos inimigos da exclusiva claridade que há
nas praias
e com falsos dentes de oiro esperam um mínimo descuido
para que possam destruir de um só golpe os sonhos e a beleza
de quem abre as portas de par em par a bens muito
[maiores
para que a volúpia entre e alvorece o ar.
A partir desse dia poderíamos ter começado a aprender a agir conclusivamente
sobre o passado, a prevenir
o mal do desencanto.
domingo, 24 de novembro de 2024
quinta-feira, 21 de novembro de 2024
Revolução - Sophia de Mello Breyner Anderson
Revolução
Como casa limpa
Como chão varrido
Como porta aberta
Como puro início
Como tempo novo
Sem mancha nem vício
Como a voz do mar
Interior de um povo
Como página em branco
Onde o poema emerge
Como arquitectura
Do homem que ergue
Sua habitação
Sophia de Mello Breyner Anderson
27 de Abril de 1974. [In "O Nome das
Coisas