sexta-feira, 8 de agosto de 2025

DIZEM QUE A VERDADE É LOUCA - Adão Cruz

 

DIZEM QUE A VERDADE É LOUCA

                         

Dizem que verdade é louca

                         mas não é.

                         Ela apenas foge dos comedores de cabeças que todos os dias

                         entram dentro de nós.

                         Dizem que a verdade é louca

                         mas não é.

                         Ela apenas chora o rio de sangue de um bárbaro genocídio

                         fechado na indiferença dos brancos lençóis do nosso íntimo prazer.

                         Dizem que a verdade é louca

                         mas não é.

                         Ela apenas enfrenta os vampiros da mente, devoradores do

                         pensamento e da razão que ainda habitam alguns cantos e

                         esquinas da nossa cidade interior.

                         Dizem que a verdade é louca

                         mas não é.

                         Ela apenas grita de terror ao ver entrar tantos restos de vida pela

                         porta de saída para os abismos da dor.

                         Dizem que a verdade é louca

                         mas não é.

                         Ela apenas tenta estender os braços ao fim do mundo para acordar

                         do pesadelo a humanidade adormecida.

                         Loucos somos nós

                         apáticos e serenos

                         inundados de fé.

                         Sorrimos

                         bocejamos

                         e calmamente nos sentamos

                         todos os dias

                         cegos e mudos

                         à mesa do café.

 Adão Cruz

quinta-feira, 7 de agosto de 2025

Jorge de Sena “Hei-de ser tudo o que eles querem”

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“Hei-de ser tudo o que eles querem

1

Hei-de ser tudo o que eles querem:
a raiva é toda de eu não ser um espelho
em que mirem com gosto os próprios cornos,
as caudas com lacinhos, e os bigodes
de chibos capripédicos.
Não sou nem sequer imagem.
Mas voz eu sou
que como agulha ou lança ou faca ou espada
mesmo que não dissesse da miséria
de lodo e trampa em que se espojam vis
só porque existe é como uma denúncia.
Hei-de ser tudo, não o sendo. Um dia
– podres na terra ou nos caixões de chumbo
estes zelosos treponemas lusos (1) –
uma outra gente, e limpa, julgará
desta vergonha inominável que é
ter de existir num tempo de canalhas
de um umbigo preso à podridão de impérios
e à lei de mendigar favor dos grandes.

2

De cada vez que um governo necessita de segredos,
por segurança do Estado
ou para melhor êxito
nas negociações internacionais,
é o mesmo que negar,
como negaram sempre desde que o mundo é mundo,
a liberdade.

Sempre que um povo aceita que o seu governo,
ainda que eleito com quantas tricas já se sabe,
invoque a lei e a ordem para calar alguém,
como fizeram sempre desde que o mundo é mundo,
nega-se
a liberdade.

Porque, se há algum segredo na vida pública
que todos não podem saber
é porque alguém, sem saber,
é o preço do negócio feito.
E se há uma ordem e uma lei que não inclua
mesmo que seja o último dos asnos e dos pulhas
e o seu direito a ser como nasceu ou o fizeram,
a liberdade
é uma farsa,
a segurança
é uma farsa,
a ordem é uma farsa,
não há nada que não seja uma farsa,
a mesma farsa representada sempre
desde que o mundo é mundo,
por aqueles que se arrogam ser
empresários dos outros
e nem pagam decentemente
senão aos maus actores.

Jorge de Sena

1) Treponemas – espécie de protozoários (seres vivos unicelulares) parasitas, do grupo das espiroquetas, que inclui o agente causador da sífilis (Dic. Porto Editora)

quarta-feira, 6 de agosto de 2025

Rosa de Hiroshima - Ney Matogrosso

Rosa de Hiroshima

 

Pensem nas crianças mudas, telepáticas
Pensem nas meninas cegas, inexatas
Pensem nas mulheres, rotas alteradas
Pensem nas feridas como rosas cálidas

Mas, ó, não se esqueçam da rosa, da rosa
Da rosa de Hiroshima, a rosa hereditária
A rosa radioativa, estúpida e inválida
A rosa com cirrose, a anti-rosa atômica
Sem cor, sem perfume, sem rosa, sem nada

Compositor Gerson Conrad

Letra Vinícius De Moraes


terça-feira, 5 de agosto de 2025

MEUS IRMÃOS... - Nâzim Hikmet

 

MEUS IRMÃOS...

Meus irmãos
É preciso atrelar os nossos poemas
à charrua do boi magro
É preciso que este se enterre até aos joelhos
na vaza dos arrozais
É preciso que eles façam todas as perguntas
É preciso que recolham toda a luz
É preciso que os nossos poemas como marcos milenários
balizem as estradas
É preciso que sejam o sinal a anunciar a aproximação do adversário
É preciso que batam tambores na selva

E enquanto na terra houver um único país ou um único homem escravo
E enquanto no céu restar nem que seja uma única nuvem atómica
É preciso que os nossos poemas dêem tudo por tudo,
corpo e alma,
para a grande liberdade.

Nâzim Hikmet



quarta-feira, 30 de julho de 2025

SALAMARGO - Eduardo Alves da Costa

 

SALAMARGO


Salamargo é o pão de cada dia;
pão de suor, amargonia.
Amargura por viver nesta agonia,
salamargando a tirania.

Salamargo é o tirano, segundo a segundo
amargo sal que salga o mundo.
Assassino das manhãs, carrasco das tardes,
ladrão de todas as noites
e de seu mistério profundo;
carcereiro de seu irmão, a transmudar
a fantasia em noite de alcatrão.

Amargo é fado de nascer escravo,
amargonauta em mar de sal,
nesta salsa-ardente irreal em que cravo
unha e dentes, buscando viver
como um bravo entre decadentes.

Salamargo, tão amargo quanto
o mais amargo sal, é comer
o pão de cada dia sob o tacão
da tirania. Um pão amargo,
sem sal, pobre de amor e fantasia.

Salamargo existir sem poesia.

 Eduardo Alves da Costa,

no livro “No Caminho com Maiakóvski”

sexta-feira, 25 de julho de 2025

CANÇÃO - Efraín Huerta

 

CANÇÃO

A lua tem sua casa

Mas não a tem

a menina negra

a menina negra de Alabama

 

A menina negra sorri

e seu sorriso

brilha como se fosse

a colher de prata

dos pobres

A lua tem sua casa

Mas a menina negra não tem casa

a menina negra

a menina negra de Alabama

Efraín Huerta

autógrafo

CANCIÓN

La luna tiene su casa
Pero no la tiene
la niña negra
la niña negra de Alabama

La niña negra sonríe
y su sonrisa
brilla como si fuera
la cuchara de plata
de los pobres

La luna tiene su casa
Pero la niña negra no tiene casa
la niña negra
la niña negra de Alabama

sexta-feira, 18 de julho de 2025

Velas - Constantino Cavafy

Velas

Temos à frente os dias do futuro
como uma fila de velas acesas
– quentes e vivas e douradas velas.

Ficam atrás os dias passados,
fileira triste de velas sem chama:
ainda sobe fumo das que estão mais perto,
vergadas pelas frias que já se apagaram.

Eu não quero vê-las: tanto me entristece o seu ar de agora
como relembrar o fulgor antigo.
Olho à minha frente as velas acesas.

Não vou voltar-me nem vou ver num arrepio
como cresce tanto a fileira escura,
como é tão veloz o apagar das velas

Constantino Cavafy

quinta-feira, 10 de julho de 2025

Poema para Galileu . António Gedeão

Poema para Galileo

Estou olhando o teu retrato, meu velho pisano,

aquele teu retrato que toda a gente conhece,

em que a tua bela cabeça desabrocha e floresce

sobre um modesto cabeção de pano.

Aquele retrato da Galeria dos Ofícios da tua velha Florença.

(Não, não, Galileo! Eu não disse Santo Ofício.

Disse Galeria dos Ofícios.)

Aquele retrato da Galeria dos Ofícios da requintada Florença.

 

Lembras-te? A Ponte Vecchio, a Loggia, a Piazza della Signoria…

Eu sei… eu sei…

As margens doces do Arno às horas pardas da melancolia.

Ai que saudade, Galileo Galilei!

 

Olha. Sabes? Lá em Florença

está guardado um dedo da tua mão direita num relicário.

Palavra de honra que está!

As voltas que o mundo dá!

Se calhar até há gente que pensa

que entraste no calendário.

 

Eu queria agradecer-te, Galileo,

a inteligência das coisas que me deste.

Eu,

e quantos milhões de homens como eu

a quem tu esclareceste,

ia jurar- que disparate, Galileo!

- e jurava a pés juntos e apostava a cabeça

sem a menor hesitação-

que os corpos caem tanto mais depressa

quanto mais pesados são.

 

Pois não é evidente, Galileo?

Quem acredita que um penedo caia

com a mesma rapidez que um botão de camisa ou que um seixo da praia?

Esta era a inteligência que Deus nos deu.

 

Estava agora a lembrar-me, Galileo,

daquela cena em que tu estavas sentado num escabelo

e tinhas à tua frente

um friso de homens doutos, hirtos, de toga e de capelo

a olharem-te severamente.

Estavam todos a ralhar contigo,

que parecia impossível que um homem da tua idade

e da tua condição,

se tivesse tornado num perigo

para a Humanidade

e para a Civilização.

Tu, embaraçado e comprometido, em silêncio mordiscavas os lábios,

e percorrias, cheio de piedade,

os rostos impenetráveis daquela fila de sábios.

 

Teus olhos habituados à observação dos satélites e das estrelas,

desceram lá das suas alturas

e poisaram, como aves aturdidas- parece-me que estou a vê-las -,

nas faces grávidas daquelas reverendíssimas criaturas.

E tu foste dizendo a tudo que sim, que sim senhor, que era tudo tal qual

conforme suas eminências desejavam,

e dirias que o Sol era quadrado e a Lua pentagonal

e que os astros bailavam e entoavam

à meia-noite louvores à harmonia universal.

E juraste que nunca mais repetirias

nem a ti mesmo, na própria intimidade do teu pensamento, livre e calma,

aquelas abomináveis heresias

que ensinavas e descrevias

para eterna perdição da tua alma.

Ai Galileo!

Mal sabem os teus doutos juízes, grandes senhores deste pequeno mundo

que assim mesmo, empertigados nos seus cadeirões de braços,

andavam a correr e a rolar pelos espaços

à razão de trinta quilómetros por segundo.

Tu é que sabias, Galileo Galilei.

 

Por isso eram teus olhos misericordiosos,

por isso era teu coração cheio de piedade,

piedade pelos homens que não precisam de sofrer, homens ditosos

a quem Deus dispensou de buscar a verdade.

Por isso estoicamente, mansamente,

resististe a todas as torturas,

a todas as angústias, a todos os contratempos,

enquanto eles, do alto incessível das suas alturas,

foram caindo,

caindo,

caindo,

caindo,

caindo sempre,

e sempre,

ininterruptamente,

na razão direta do quadrado dos tempos.

 

segunda-feira, 7 de julho de 2025

“Soneto exposto” - Amadeu Baptista

 

“Soneto exposto”

(ou uma certa ideia de memória do país)

O desengonçado trânsito cavernícola.
A eterna crise com os dentes afiados.
Um país de paisagens marítimas e vinícolas,
em que uns são filhos e outros enteados.

O recorte da serra na distância.
Os pardais semoventes sobre as praças.
Alguns homens sombrios com a ânsia
de não serem roídos pelas traças.

O redil organizado como um caos.
Uns quantos menos bons e outros muito maus.
Uma planície, uma cidade, um chaparral.

E em volta disto o mar, sempre indiferente
do que queira ou não queira a sua gente.
E fica no soneto exposto Portugal.

Amadeu Baptista

quinta-feira, 3 de julho de 2025

“África” - Jacques Romain

 

 “África”

Tenho guardado tua recordação.

África, estás em mim

como a farpa na ferida,

como um fetiche tutelar no meio da aldeia.

Faça de mim a pedra de sua funda,

de minha boca os lábios de sua chaga,

de meus joelhos as colunas quebradas

de tua humilhação

No entanto,

não quero ser mais do que de vossa raça,

operários camponeses de todos os países…

operário branco de Detroit, peão negro do Alabama.

Povo inumerável das galés capitalistas,

o destino nos ergue ombro a ombro

e renegando o antigo malefício

dos tabus do sangue

pisamos os escombros de nossas solidões.

Se a torrente é fronteira

arrancaremos das barrancas sua cabeleira impossível de conter

Se a serra é a fronteira

romperemos a mandíbula dos vulcões

que reforçam as Cordilheiras

e a planície será a esplanada da aurora

onde reuniremos nossas forças esquartejadas

pela astúcia de nossos patrões.

Como a contradição dos traços

se resolve na harmonia do rosto

proclamamos a unidade do sofrimento

e da rebelião

de todos os povos em toda a superfície da

terra

e no pilão dos tempos fraternais

misturamos a massa

no pó dos ídolos.

Jacques Romain