sexta-feira, 24 de abril de 2009

"Faz-se caminho ao andar..."


25 de Abril de 1974

O caminho faz-se a andar

Caminhante, são teus rastos
o caminho, e nada mais;
caminhante, nãocaminho,
faz-se caminho ao andar.
Ao andar faz-se o caminho,
e ao olhar-se para trás
vê-se a senda que jamais
se há-de voltar a pisar.
Caminhante
, nãocaminho,
somente sulcos no mar.

* * * * * * *

Caminante, son tus huellas
el camino y
nada más;
Caminante, no hay camino,
se hace camino al
andar.
Al
andar se hace el camino,
y al
volver la vista atrás
se ve la
senda que nunca
se ha de
volver a pisar.
Caminante no hay camino
sino estelas en la mar.

António Machado



quinta-feira, 23 de abril de 2009

Nós europeus


Nó encapeladura

O slogan do Partido Socialista

Nós Europeus

Estamos amarrados à UE com muitos, muitos nós cegos e outros mais que vos irei mostrar.

Nós por cá todos bem!




terça-feira, 14 de abril de 2009

Esteiros - Soeiro Pereira Gomes


Esteiros

"Para os filhos dos homens que nunca foram meninos, escrevi este livro."



Ilustrações de Álvaro Cunhal



Esteiros. Minúsculos canais, como dedos de mão espalmada, abertos na margem do Tejo. Dedos das mãos avaras dos telhais, que roubam nateiro às águas e vigores à malta. Mãos de lama que só o rio afaga.

O U T O N O



1

Fecharam os telhais. Com os prenúncios de outono, as primeiras chuvas encheram de frémito o lodaçal negro dos esteiros, e o vento agreste abriu buracos nos trapos dos garotos, num arrepio de águas e de corpos. Também sobre os fornos e engenhos perpassou lufada desoladora, que não deixava o fumo erguer-se para o alto. Que indústria como aquela queria vento, é certo; mas sol também. -- Vento para enxugar e sol para calcinar -- sentenciavam os mestres. Mas o sol andava baixo: não calcinava o tijolo, nem as carnes juvenis da malta.
Menos por isso que pela fraqueza das vendas, os patrões não quiseram arriscar mais dinheiro nas fornadas. Ano mau... Todos os anos se dizia o mesmo. Desde que apareceu a telha francesa, e o bloco de cimento levou tudo de mal a pior.
-- Indústria pobre, senhor Castro -- chorava-se o Zé Vicente ao pagar a renda do terreno. -- Indústria pobre... -- E era.
Desde os garotos maltrapilhos aos valadores que vinham de muito longe -- sete horas de comboio, a sonhar jornas impossíveis. Por isso, agora, o dia sete de Setembro passava despercebido, sem festa. Dantes, era sagrado. Recebia-se a féria pagava-se os fiados de três meses e festejava-se a despedida. Os moços queimavam o resto das energias na ornamentação do telhal; arranjavam instrumentos de lata e cega-regas; desfilavam em cortejo. E, enquanto o caniço verde dos esteiros ondulava no alto dos fornos, as canas secas dos foguetes subiam ao ceu. Patrõese mestres sorriam, seguros da conciliação; moços e valadores cantavam, ansiosos de melhor vida.
Bons tempos, aqueles! Os mestres ainda berravam, como dantes: -- Eh, gente! Vamos ligeiro, que esta fornadaé o resto. -- Mas a cadência dos assos não se alterava, porque o pessoal já sabia que ia pagar o descanso com sete meses de privações.
Assim ficaram as eiras desertas. Apenas no Telhal Grande havia ainda algumas dezenas de tijolos que o mestre mandara pôr em fio, por causa do tempo ruim. E mesmo esses, depressa iriam engrossar as arrumas, bem cobertas de telha, e mais volumosas que quaisquer duas moradias da malta dos telhais.
Ali se guardava o suor dum verão de fadigas, Vento e sol; fadigas e suor -- era o que os telhais queriam.


sábado, 11 de abril de 2009

O VIANDANTE - Carlos de Oliveira

O VIANDANTE

Trago notícias da fome
que corre nos campos tristes:
soltou-se a fúria do vento
e tu, miséria, persistes.
Tristes notícias vos dou:
caíram espigas da haste,
foi-se o galope do vento
e tu, miséria, ficaste.
Foi-se a noite, foi-se o dia,
fugiu a cor às estrelas:
e, estrela nos campos tristes,
só tu, miséria, nos velas.

Carlos de Oliveira

quinta-feira, 9 de abril de 2009

Uma Páscoa diferente

Vida de Lenito

Era uma vez um caso. O caso de Lenito, que conduziu do Barreiro até Sintra e que quando chegou ao destino morreu de enfarte.

Na minha humilde e terrena modéstia pergunto: porque teve ele de fazer aquela viagem, fechado no carro, parado nos engarrafamentos da ponte e da A19 para depois morrer? Não poderia ter morrido antes? Não lhe podia ter sido poupado o sacrifício da viagem?

Que sentido de humor sinistro governa a perversidade do destino individual de todas as personagens que se mexem à nossa volta?

É que conduzir do Barreiro até Sintra era perfeitamente dispensável. E tudo para quê? Porquê?

Era Páscoa, dia dez de Março, e a tradição instituída no ano anterior obrigava-o a jantar na casa da mãe, em Setúbal; a dormir na casa da irmã, no Barreiro, na véspera, e almoçar na casa da sogra, em Sintra, no domingo. Vendo bem, era uma tradição mais conveniente do que a dos três anos anteriores, com a obrigação de ir a Viseu almoçar a casa dos pais da sogra. A morte dos mesmos num acidente de viação, em Lagos, no Verão, deslocara o centro da Páscoa de Viseu para Sintra. Abençoada.

O que o surpreendia era a falta de argumentos sempre que se decidia o itinerário para a Páscoa, que era tradicional, como era óbvio. Intocável e sagrado. O que lhe apetecia mesmo, todos os anos, era largar tudo e ficar em casa, sem falar, ou ir para uma praia o mais longe possível de Viseu, de Sintra ou de Lagos. Mas acabava sempre por ceder. Os miúdos

Ela tratava de tudo. Amêndoas, ovos de chocolate, a escola deles, os castigos para as más notas, as repreensões, a família dele e os pais dela, irmãos, cunhados, amigos. E depois deixava-se ficar junto da mãe à espera que ele, o motorista que a fora levar, regressasse a horas para o almoço de família depois de cumprir o programa de festas em Setúbal e no Barreiro.

O que mais gostava era o alívio depois de tudo acabar, e voltar ao seu sofá, na sua sala de estar, na sua casa, no beco mais estreito do bairro da Socasa, entre a escola e o prado.

Em geral, em Fevereiro definia-se a estratégia. Ele tentava sempre sugerir a alternativa habitual: de fazer uma Páscoa diferente, mas a resposta era sempre a mesma. Que disparate! Queria matar a mãe de desgosto? E depois, os miúdos, que tinham de ver a avó, que ela nunca os via, que era uma pena. Que talvez no ano seguinte se pensasse nisso, ou quando os miúdos fossem mais crescidos. Seria inconveniente não ir ver a senhora a Viseu ou a Sintra. E ele a guiar.

E assim foi. Sexta-feira, feriado, carregou o carro de sacos e fez o trajecto habitual até Setúbal. A mãe, na mesma. Queixosa. Que nunca a visitavam. E como estavam os miúdos. não os conhecia. E a irmã, no Barreiro, nunca ia. E os filhos dela, se bem que um deles era dela e não dele, mas hoje em dia as coisas eram diferentes. Sair para ver o mar? Nem pensar. A saúde não o permitia. Quando muito um galão no café da esquina.

Pouco a pouco, o monólogo dava lugar ao silêncio e o queixume à cumplicidade. Nunca mais ouviste falar dele? Não. E ficavam por .

E assim se passava a sexta-feira e o sábado, dia que era ocupado no hipermercado, a ajudar a mãe nas compras e a carregar o carro de mais sacos: hortaliça para a irmã, fruta para os pequenos, pacotes de leite. E a deixava, curvada, junto à porta de alumínio a acenar. Até à próxima, no Natal.

O jantar na casa da irmã era como uma injecção indolor dada num hospital particular onde todos os doentes são igualmente bem tratados, desde que paguem. Jantavam, viam um DVD escolhido pelo mais novo e iam-se deitar. Dormia no sofá da sala, com repetidas recomendações para não se levantar no meio da noite para não acordar os miúdos. De manhã levantava-se e comia de acordo com o horário e a ementa do mais novo, saíam para o parque do jardim mais próximo e ali ficavam presos dentro do gradeamento de plástico colorido a transportar o mais novo do baloiço grafitado de verde para o escorrega grafitado de azul. Almoçavam no McDonald’s, presente do tio, e ainda deixava um cheque para ajudar na comida. Ele, é claro, não podia comer pois tinha de estar em Sintra uma hora depois para o almoço.

E assim, do Barreiro para Sintra, o Lenito voava, ultrapassando pela direita se fosse necessário, parando nas habituais filas, mastigando pastilha elástica.

Nesse dia, chegado a Sintra foi recebido com o olhar frio da mulher. Atrasara-se meia hora e a sogra gostava de comer a horas. O borrego tinha perdido a graça. E foi nesse momento que se sentiu mal. Sentou-se num banco de pedra junto à entrada e pediu um copo com água. Que disparate, iam almoçar! Um avião riscava o céu, ao longe. As abelhas zumbiam fazendo a ronda a um cacho da glicínia rosa que trepava ao longo da parede caiada. O resto… O resto foi fulminante.

E o Lenito passou a ser mais um número para as estatísticas.

Isabel Vidal