quinta-feira, 10 de julho de 2025

Poema para Galileu . António Gedeão

Poema para Galileo

Estou olhando o teu retrato, meu velho pisano,

aquele teu retrato que toda a gente conhece,

em que a tua bela cabeça desabrocha e floresce

sobre um modesto cabeção de pano.

Aquele retrato da Galeria dos Ofícios da tua velha Florença.

(Não, não, Galileo! Eu não disse Santo Ofício.

Disse Galeria dos Ofícios.)

Aquele retrato da Galeria dos Ofícios da requintada Florença.

 

Lembras-te? A Ponte Vecchio, a Loggia, a Piazza della Signoria…

Eu sei… eu sei…

As margens doces do Arno às horas pardas da melancolia.

Ai que saudade, Galileo Galilei!

 

Olha. Sabes? Lá em Florença

está guardado um dedo da tua mão direita num relicário.

Palavra de honra que está!

As voltas que o mundo dá!

Se calhar até há gente que pensa

que entraste no calendário.

 

Eu queria agradecer-te, Galileo,

a inteligência das coisas que me deste.

Eu,

e quantos milhões de homens como eu

a quem tu esclareceste,

ia jurar- que disparate, Galileo!

- e jurava a pés juntos e apostava a cabeça

sem a menor hesitação-

que os corpos caem tanto mais depressa

quanto mais pesados são.

 

Pois não é evidente, Galileo?

Quem acredita que um penedo caia

com a mesma rapidez que um botão de camisa ou que um seixo da praia?

Esta era a inteligência que Deus nos deu.

 

Estava agora a lembrar-me, Galileo,

daquela cena em que tu estavas sentado num escabelo

e tinhas à tua frente

um friso de homens doutos, hirtos, de toga e de capelo

a olharem-te severamente.

Estavam todos a ralhar contigo,

que parecia impossível que um homem da tua idade

e da tua condição,

se tivesse tornado num perigo

para a Humanidade

e para a Civilização.

Tu, embaraçado e comprometido, em silêncio mordiscavas os lábios,

e percorrias, cheio de piedade,

os rostos impenetráveis daquela fila de sábios.

 

Teus olhos habituados à observação dos satélites e das estrelas,

desceram lá das suas alturas

e poisaram, como aves aturdidas- parece-me que estou a vê-las -,

nas faces grávidas daquelas reverendíssimas criaturas.

E tu foste dizendo a tudo que sim, que sim senhor, que era tudo tal qual

conforme suas eminências desejavam,

e dirias que o Sol era quadrado e a Lua pentagonal

e que os astros bailavam e entoavam

à meia-noite louvores à harmonia universal.

E juraste que nunca mais repetirias

nem a ti mesmo, na própria intimidade do teu pensamento, livre e calma,

aquelas abomináveis heresias

que ensinavas e descrevias

para eterna perdição da tua alma.

Ai Galileo!

Mal sabem os teus doutos juízes, grandes senhores deste pequeno mundo

que assim mesmo, empertigados nos seus cadeirões de braços,

andavam a correr e a rolar pelos espaços

à razão de trinta quilómetros por segundo.

Tu é que sabias, Galileo Galilei.

 

Por isso eram teus olhos misericordiosos,

por isso era teu coração cheio de piedade,

piedade pelos homens que não precisam de sofrer, homens ditosos

a quem Deus dispensou de buscar a verdade.

Por isso estoicamente, mansamente,

resististe a todas as torturas,

a todas as angústias, a todos os contratempos,

enquanto eles, do alto incessível das suas alturas,

foram caindo,

caindo,

caindo,

caindo,

caindo sempre,

e sempre,

ininterruptamente,

na razão direta do quadrado dos tempos.

 

segunda-feira, 7 de julho de 2025

“Soneto exposto” - Amadeu Baptista

 

“Soneto exposto”

(ou uma certa ideia de memória do país)

O desengonçado trânsito cavernícola.
A eterna crise com os dentes afiados.
Um país de paisagens marítimas e vinícolas,
em que uns são filhos e outros enteados.

O recorte da serra na distância.
Os pardais semoventes sobre as praças.
Alguns homens sombrios com a ânsia
de não serem roídos pelas traças.

O redil organizado como um caos.
Uns quantos menos bons e outros muito maus.
Uma planície, uma cidade, um chaparral.

E em volta disto o mar, sempre indiferente
do que queira ou não queira a sua gente.
E fica no soneto exposto Portugal.

Amadeu Baptista

quinta-feira, 3 de julho de 2025

“África” - Jacques Romain

 

 “África”

Tenho guardado tua recordação.

África, estás em mim

como a farpa na ferida,

como um fetiche tutelar no meio da aldeia.

Faça de mim a pedra de sua funda,

de minha boca os lábios de sua chaga,

de meus joelhos as colunas quebradas

de tua humilhação

No entanto,

não quero ser mais do que de vossa raça,

operários camponeses de todos os países…

operário branco de Detroit, peão negro do Alabama.

Povo inumerável das galés capitalistas,

o destino nos ergue ombro a ombro

e renegando o antigo malefício

dos tabus do sangue

pisamos os escombros de nossas solidões.

Se a torrente é fronteira

arrancaremos das barrancas sua cabeleira impossível de conter

Se a serra é a fronteira

romperemos a mandíbula dos vulcões

que reforçam as Cordilheiras

e a planície será a esplanada da aurora

onde reuniremos nossas forças esquartejadas

pela astúcia de nossos patrões.

Como a contradição dos traços

se resolve na harmonia do rosto

proclamamos a unidade do sofrimento

e da rebelião

de todos os povos em toda a superfície da

terra

e no pilão dos tempos fraternais

misturamos a massa

no pó dos ídolos.

Jacques Romain

 

Peço a Paz - Casimiro de Brito

Peço a Paz

Peço a paz
e o silêncio

A paz dos frutos
e a música
de suas sementes
abertas ao vento

Peço a paz
e meus pulsos traçam na chuva
um rosto e um pão

Peço a paz
silenciosamente
a paz a madrugada em cada ovo aberto
aos passos leves da morte

A paz peço
a paz apenas
o repouso da luta no barro das mãos
uma língua sensível ao sabor do vinho
a paz clara
a paz quotidiana
dos actos que nos cobrem
de lama e sol

Peço a paz e o
silêncio

Casimiro de Brito

in "Jardins de Guerra"

terça-feira, 1 de julho de 2025

Nós ensinamos vida, senhor - Rafeef Ziadeh

 

Nós ensinamos vida, senhor

Hoje, meu corpo foi um massacre televisionado.
Hoje, meu corpo foi um massacre televisionado que teve de caber em frases de efeito e limite de palavras.
Hoje, meu corpo foi um massacre televisionado que teve de caber em frases de efeito e limite de palavras preenchido o bastante com estatísticas para se contrapor à resposta comedida.
E eu aperfeiçoei meu inglês e aprendi minhas resoluções da ONU.
Mas, mesmo assim, ele me perguntou, Sra. Ziadah, você não acha que tudo estaria resolvido se vocês parassem de ensinar tanto ódio para as suas crianças?
Pausa.
Eu procuro dentro de mim força para permanecer paciente, mas paciência não está na ponta da minha língua enquanto as bombas caem sobre Gaza.
A paciência acabou me escapando.
Pausa. Sorriso.
Nós ensinamos vida, senhor.
Rafeef, lembre-se de sorrir.
Pausa.
Nós ensinamos vida, senhor.
Nós palestinos ensinamos vida depois de eles terem ocupado o último céu.
Nós ensinamos vida depois de eles terem construído suas colónias e paredes de apartheid, depois dos últimos céus.
Nós ensinamos vida, senhor.
Mas hoje, hoje meu corpo foi um massacre televisionado feito para caber em frases de efeito e limite de palavras.
E dê-nos apenas uma história, uma história humana.
Veja, não é político.
Nós só queremos contar para as pessoas sobre você e seu povo então dê-nos uma história humana.
Não use aquela palavra “apartheid” e “ocupação”.
Não é político.
Você tem que me ajudar como jornalista a te ajudar a contar sua história que não é uma história política.
Hoje, meu corpo foi um massacre televisionado.
Que tal você nos dar uma história de uma mulher em Gaza que precisa de medicação?
Que tal você?
Você tem membros de ossos quebrados o bastante para cobrir o Sol?
Me passe os seus mortos e me dê uma lista com os seus nomes em um limite de mil e duzentas palavras.
Hoje, meu corpo foi um massacre televisionado que teve de caber em frases de efeito e limite de palavras e emocione aqueles que são insensíveis a sangue terrorista.
Mas eles sentiram pena.
Sentiram pena pelo gado em Gaza.
Então eu dei a eles resoluções da ONU e estatísticas e nós condenamos e nós lamentamos e nós rejeitamos.
E estes não são dois lados iguais: ocupador e ocupado.
E uma centena de mortos, duas centenas de mortos e mil mortos.
E, neste meio tempo, crime de guerra e massacre, eu descarrego palavras e sorrio “não exótica”, “não terrorista”.
E eu reconto, eu reconto uma centena de mortos, mil mortos.
Tem alguém aí fora?
Alguém ouvirá?
Eu gostaria de poder lamentar sobre seus corpos.
Eu gostaria simplesmente de poder correr de pés descalços em cada campo de refugiados e segurar cada criança, cobrir seus ouvidos para que elas não tivessem que ouvir o som dos bombardeios pelo resto de suas vidas como eu tenho.
Hoje, meu corpo foi um massacre televisionado
E deixe-me te dizer, não há nada que as suas resolução da ONU tenham feito em relação a isto.
E nenhuma frase de efeito, nenhuma frase de efeito que eu possa apresentar, não importa o quão bom fique meu inglês, nenhuma frase de efeito, nenhuma frase de efeito, nenhuma frase de efeito, nenhuma frase de efeito vai trazê-los de volta à vida.
Nenhuma frase de efeito vai concertar isto.
Nós ensinamos vida, senhor.
Nós ensinamos vida, senhor.
Nós palestinos acordamos a cada manhã e ensinamos ao resto do mundo vida, senhor.

Rafeef Ziadeh

Tradução por Tomaz Amorim Izabel

Today, my body was a TV’d massacre.
Today, my body was a TV’d massacre that had to fit into sound-bites and word limits.
Today, my body was a TV’d massacre that had to fit into sound-bites and word limits filled enough with statistics to counter measured response.
And I perfected my English and I learned my UN resolutions.
But still, he asked me, Ms. Ziadah, don’t you think that everything would be resolved if you would just stop teaching so much hatred to your children?
Pause.
I look inside of me for strength to be patient but patience is not at the tip of my tongue as the bombs drop over Gaza.
Patience has just escaped me.
Pause. Smile.
We teach life, sir.
Rafeef, remember to smile.
Pause.
We teach life, sir.
We Palestinians teach life after they have occupied the last sky.
We teach life after they have built their settlements and apartheid walls, after the last skies.
We teach life, sir.
But today, my body was a TV’d massacre made to fit into sound-bites and word limits.
And just give us a story, a human story.
You see, this is not political.
We just want to tell people about you and your people so give us a human story.
Don’t mention that word “apartheid” and “occupation”.
This is not political.
You have to help me as a journalist to help you tell your story which is not a political story.
Today, my body was a TV’d massacre.
How about you give us a story of a woman in Gaza who needs medication?
How about you?
Do you have enough bone-broken limbs to cover the sun?
Hand me over your dead and give me the list of their names in one thousand two hundred word limits.
Today, my body was a TV’d massacre that had to fit into sound-bites and word limits and move those that are desensitized to terrorist blood.
But they felt sorry.
They felt sorry for the cattle over Gaza.
So, I give them UN resolutions and statistics and we condemn and we deplore and we reject.
And these are not two equal sides: occupier and occupied.
And a hundred dead, two hundred dead, and a thousand dead.
And between that, war crime and massacre, I vent out words and smile “not exotic”, “not terrorist”.
And I recount, I recount a hundred dead, a thousand dead.
Is anyone out there?
Will anyone listen?
I wish I could wail over their bodies.
I wish I could just run barefoot in every refugee camp and hold every child, cover their ears so they wouldn’t have to hear the sound of bombing for the rest of their life the way I do.
Today, my body was a TV’d massacre
And let me just tell you, there’s nothing your UN resolutions have ever done about this.
And no sound-bite, no sound-bite I come up with, no matter how good my English gets, no sound-bite, no sound-bite, no sound-bite, no sound-bite will bring them back to life.
No sound-bite will fix this.
We teach life, sir.
We teach life, sir.
We Palestinians wake up every morning to teach the rest of the world life, sir.

 

 

 

domingo, 29 de junho de 2025

Os Últimos Dias Da Humanidade - Karl Kraus

 

Os Últimos Dias Da Humanidade

 O Eterno Descontente: É esta a guerra mundial.

É este o meu manifesto.

Tudo maduramente ponderei.

Tomei sobre mim a tragédia

que se decompõe nas cenas da

humanidade em decomposição,

para que a ouvisse o espírito

disposto a apiedar‑se das

vítimas, mesmo que ele próprio

tivesse renunciado para todo

sempre à ligação com um

ouvido humano.

Ele que capte a nota dominante desta

época, o eco da minha loucura

sangrenta, que me torna cúmplice

de todo este alarido.

Ele que a aceite como redenção!

Karl Kraus


segunda-feira, 23 de junho de 2025

FLOR DA LIBERDADE - Miguel Torga

 

FLOR DA LIBERDADE


Sombra dos mortos, maldição dos vivos.
Também nós... Também nós... E o sol recua.
Apenas o teu rosto continua
A sorrir como dantes,
Liberdade!
Liberdade do homem sobre a terra,
Ou debaixo da terra.
Liberdade!
O não inconformado que se diz
A Deus, à tirania, à eternidade.

Sepultos insepultos,
Vivos amortalhados,
Passados e presentes cidadãos:
Temos nas nossas mãos
O terrível poder de recusar!
E é essa flor que nunca desespera
No jardim da perpétua primavera.

Miguel Torga

 

 

sexta-feira, 20 de junho de 2025

Geografia da areia - Antonio Gamoneda

 

Geografia da areia

O mapa de coral repousa

esperando o retorno da onda

assim, o Desperto,

sereno retorna

ao mar da Consciência Pura.

Antonio Gamoneda

 

Geografía de arena

El mapa de coral descansa

esperando el retorno de la ola

así, el Despierto,

sereno retorna

al mar de la Conciencia Pura.

quinta-feira, 19 de junho de 2025

Cantam ao longe - Carlos Queirós Ribeiro

 

Cantam ao longe

Cantam ao longe. Anoitece.
Faz frio pensar na vida;
E a natureza parece
Dizer em voz comovida,
Que o homem não a merece.

 

Carlos Queiróz Ribeiro

sábado, 14 de junho de 2025

O medo e a esperança - Fernando Couto

 

O medo e a esperança

 

Tranquilo e devagar entro na aldeia

de mão ao alto aberta em sinal de paz

Desertas e contudo palpitantes

se encontram ainda as palhotas 

 

No único rosto presente é visível

o medo está atento procurando antecipar-se

nos meandros da incómoda adivinha

 

Falo e sorrio e entreteço pontes de caniço

e não sei estendê-las até à outra margem:

fechado e atento o rosto em frente do meu

entremeia um rio sem vau e sem barcos

de águas opacas e demasiado largo

 

Procuro na memória de distantes avós

autênticos e críveis sinais de paz

e ao fazê-lo acordo aves de lembranças

de ventres pejados de sangue e ódios

e apenas avivo o rosto em frente as cores do medo

 

Olho o meu braço estendido e nu

inofensivo e pronto à espera do acolhimento

e no rosto em frente projecta-se uma sombra

a dolorosa sombra-lembrança de um chicote

E o medo ganha relevo no rosto escuro

atento e vigilante à porta da palhota:

 

pergunto aos teus olhos e às tuas costas

à tua carne e ao abismo dos teus olhos

onde e quando brotou a fonte desse medo

— como se eu fosse o deus vivo do raio

e fizesse empalidecer o teu rosto cor de noite

a ti que nunca me viste e contudo és valente

e já viste de perto a fome de feras em liberdade

 

Quero perguntar de frente aos teus olhos

e a tua cabeça pende como um ramo

ameaçado de morte com o peso dos frutos

prestes a perderem-se inúteis em chão batido

Quero perguntar-te e não sei os gestos

nem as palavras mágicas ou compreensíveis

para conjurar a mancha de medo

que ensombra o teu rosto esculpido em negro

 

Não sei os gestos e as palavras mágicas

e todavia não desisto e procuro

certo de haver uma ponte praticável

entre os meus e os teus olhos erguidos.

 Fernando Couto

- Fernando Couto, em "Rumor de água" (antologia poética).. [Organização Ana Mafalda Leite]. Maputo: Editorial Ndjira, 2007.