sábado, 29 de agosto de 2015

Destino - Maria Sofia Magalhães



Destino

Tudo o que acaba tem em si mesmo um começo
num imparável ciclo de luz e de sombras.
Fins e princípios como gémeos inseparáveis
e desavindos em perfeita harmonia
na incerteza ou determinação humana do ser.

Maria Sofia Magalhães

quinta-feira, 27 de agosto de 2015

Eu não me calo - Pablo Neruda



Eu não me calo.
Eu preconizo um amor inexorável.
E não me importa pessoa nem cão:
Só o povo me é considerável,
Só a pátria é minha condição.
Povo e pátria manejam meu cuidado,
Pátria e povo destinam meus deveres
E se logram matar o revoltado
Pelo povo, é minha Pátria quem morre.
É esse meu temor e minha agonia.
Por isso no combate ninguém espere
Que se quede sem voz minha poesia.

Pablo Neruda
1980 A meu Partido

Poesia Perigosa
 “Talvez os deveres do poeta fossem sempre os mesmos na história. O valor da poesia foi sair à rua, foi tomar parte num e noutro combate. Não se assustou o poeta quando o chamaram de rebelde. A poesia é uma insurreição. Não se ofendeu o poeta porque o chamaram de subversivo. A vida ultrapassa as estruturas e há novos códigos para a alma. De todas as partes salta a semente, todas as idéias são exóticas, esperamos a cada dia mudanças imensas, vivemos com entusiasmo a mutação da ordem humana: a primavera é insurrecional.”
“A burguesia exige uma poesia cada vez mais isolada da realidade. O poeta que sabe chamar o pão de pão e o vinho de vinho é perigoso para o agonizante capitalismo. Mais conveniente é que o poeta acredite ser “um pequeno deus”, como dissera Vicente Huidobro. Esta crença ou atitude não incomoda as classes dominantes. O poeta permanece assim comovido por seu isolamento divino e não é necessário suborná-lo ou esmagá-lo. Ele mesmo se terá subornado ao se condenar ao céu. Enquanto isso, a terra treme em seu caminho, em seu fulgor.”
Pablo Neruda em “Confesso que Vivi”. capitulo:  “Críticas e Autocríticas”.
Se há sentimentos de mudanças, não pode haver atitudes de isolação. Toda poesia e sabedoria para o povo.

terça-feira, 25 de agosto de 2015

Trinta facadas de raiva - António Calvinho

Corpos que se arrastam
e se consomem
na suja lama das picadas
e nos estilhaços das granadas
que explodem.
-- Os rebentamentos
são o compasso
tétrico
da sinfonia “Morte” !
--O fogo intenso
cruzado
é o ritmo macabro
no patético bailado.
--Um homem tomba
Ei-lo que jaz
inerte, morto,
vencido!
--Outro homem grita
vendo cair a seu lado
um companheiro soldado:
“Ah grandes filhos da puta”!
“ Mataram o meu amigo”!
(E um rosto de sangue manchado)
                
“Cambada de terroristas”!
“Hei-de matar-vos a todos”!
(E um cheiro a sangue queimado)

-- E as lágrimas amargas de raiva
rasgam sulcos vermelhos
num sujo rosto de pólvora!
E uma guerra que se declara:
Não por um povo oprimido
nem por uma Nação ofendida!
Mas por um homem ferido
num labirinto perdido
entre uma morte e uma vida!
….
---Transforma-se o oprimido
em instrumento opressor.
Nasce num peito uma guerra!
E, lá  longe….
Na sua terra
o abutre, o carrasco,
o nazi,
a peste,
enchendo o ventre de carne
escreve:
“DITOSA PÁTRIA QUE TAIS FILHOS DESTES”
                 
António Calvinho

(Foi esta a guerra para que nos alienaram e alguém se atreve a contestar o fim, preparando-se para contestar Abril)

segunda-feira, 24 de agosto de 2015

UM HOMEM - António José Forte



UM HOMEM

De repente
como uma flor violenta
um homem com uma bomba à altura do peito
e que chora convulsivamente
um homem belo minúsculo
como uma estrela cadente
e que sangra
como uma estátua jacente
esmagada sob as asas do crepúsculo
um homem com uma bomba
como uma rosa na boca
negra surpreendente
e à espera da festa louca
onde o coração lhe rebente
um homem de face aguda
e uma bomba
cega
surda
Muda
António José Forte
Uma Faca nos Dentes
Prefácio de Herberto Helder
Parceria A.M. Pereira
Livraria Editora, Lda.

sábado, 22 de agosto de 2015

De que se ri? - Mário Benedetti

De que se ri?
(serei curioso)

Numa perfeita
foto do jornal
senhor ministro
do impossível

vi enlevado
e eufórico
e perdido de riso
o seu rosto simples

serei curioso
senhor ministro
de que se ri?
de que se ri?

da sua janela
vê-se a praia
mas ignoram-se
os bairros de lata

têm seus filhos
olhos de mando
mas outros têm
o olhar triste

aqui na rua
acontecem coisas
que nem sequer
se podem dizer

os estudantes
e os trabalhadores
põem os pontos
nos ís

por isso digo
senhor ministro
de que se ri?
de que se ri?

O senhor conhece
melhor que ninguém
a lei amarga
de estes países

os senhores são duros
com a nossa gente
por quê com os outros
são todo servis

porque alienam
o património
enquanto o gringo
nos cobra o triplo

porque atraiçoam
os senhores e os outros
os bajuladores
e os senis

por isso digo
senhor ministro
de que se ri?
de que se ri?

aqui na rua
os seus guardas matam
e aqueles que morrem
são gente humilde

e os que ficam
chorando de raiva
por certo pensam
na desforra

algures na prisão
os seus homens fazem
sofrer o homem
e isso não serve

além do mais
o senhor é o mastro
principal de um barco
que vai a pique

serei curioso
senhor ministro
de que se ri?
de que se ri?

Mário Benedetti





 
De qué se ríe?
(seré curioso)

En una exacta
foto del diario
señor ministro
del imposible

vi en pleno gozo
y en plena euforia
y en plena risa
su rostro simple

seré curioso
señor ministro
de qué se ríe
de qué se ríe

de su ventana
se ve la playa
pero se ignoran
los cantegriles

tienen sus hijos
ojos de mando
pero otros tienen
mirada triste

aquí en la calle
suceden cosas
que ni siquiera
pueden decirse

los estudiantes
y los obreros
ponen los puntos
sobre las íes

por eso digo
señor ministro
de qué se ríe
de qué se ríe

usté conoce
mejor que nadie
la ley amarga
de estos países







ustedes duros
con nuestra gente
por qué con otros
son tan serviles

cómo traicionan
el patrimonio
mientras el gringo
nos cobra el triple

cómo traicionan
usté y los otros
los adulones
y los seniles

por eso digo
señor ministro
de qué se ríe
de qué se ríe

aquí en la calle
sus guardas matan
y los que mueren
son gente humilde

y los que quedan
llorando rabia
seguro piensan
en el desquite

allá en la celda
sus hombres hacen
sufrir al hombre
y eso no sirve

después de todo
usté es el palo
mayor de un barco
que se va a pique

seré curioso
señor ministro
de qué se ríe
de qué se ríe.