sexta-feira, 27 de fevereiro de 2015

ARTE POÉTICA - Mário Dionísio



- reunião clandestina (1947) Mário Dionísio -

ARTE POÉTICA

A poesia não está nas olheiras imorais de Ofélia
nem no jardim dos lilases.
A poesia está na vida,
nas artérias imensas cheias de gente em todos os sentidos,
nos ascensores constantes,
na bicha de automóveis rápidos de todos os feitios e de todas as cores,
nas máquinas da fábrica e nos operários da fábrica
e no fumo da fábrica.
A poesia está no grito do rapaz apregoando jornais,
no vaivém de milhões de pessoas conversando ou prague­jando ou rindo.
Está no riso da loira da tabacaria,
vendendo um maço de tabaco e uma caixa de fósforos.
Está nos pulmões de aço cortando o espaço e o mar.
A poesia está na doca,
nos braços negros dos carregadores de carvão,
no beijo que se trocou no minuto entre o trabalho e o jantar
— e só durou esse minuto.
A poesia está em tudo quanto vive, em todo o movimento,
nas rodas do comboio a caminho, a caminho, a caminho
de terras sempre mais longe,
nas mãos sem luvas que se estendem para seios sem véus,
na angústia da vida.
A poesia está na luta dos homens,
está nos olhos abertos para amanhã.
Mário Dionísio

quinta-feira, 26 de fevereiro de 2015

O VIANDANTE - Carlos de Oliveira

O VIANDANTE

Trago notícias da fome
que corre nos campos tristes:
soltou-se a fúria do vento
e tu, miséria, persistes.
Tristes notícias vos dou:
caíram espigas da haste,
foi-se o galope do vento
e tu, miséria, ficaste.
Foi-se a noite, foi-se o dia,
fugiu a cor às estrelas:
e, estrela nos campos tristes,
só tu, miséria, nos velas.

Carlos de Oliveira

quarta-feira, 25 de fevereiro de 2015

Saudade - João Guimarães Rosa



Saudade

Saudade de tudo!…
Saudade, essencial e orgânica,
de horas passadas,
que eu podia viver e não vivi!…
Saudade de gente que não conheço,
de amigos nascidos noutras terras,
de almas órfãs e irmãs,
de minha gente dispersa,
que talvez até hoje ainda espere por mim…

Saudade triste do passado,
saudade gloriosa do futuro,
saudade de todos os presentes
vividos fora de mim!…

Pressa!…
Ânsia voraz de me fazer em muitos,
fome angustiosa da fusão de tudo,
sede da volta final
da grande experiência:
uma só alma em um só corpo,
uma só alma-corpo,
um só,
um!…
como quem fecha numa gota
o Oceano,
afogado no fundo de si mesmo…



João Guimarães Rosa
in Magma

segunda-feira, 23 de fevereiro de 2015

Os ceifeiros - Félix Cucurull



Os ceifeiros
[tradução de António de Macedo/Carlos Oliveira]
“in Poemas MAIO trabalho, luta – edições Avante!”


Curvados sobre a terra,
não sei se o esplendor
do trigo e das papoilas
vos acende nos olhos alegria bastante
quando o sol não é só luz
mas uma carga brutal que se abate
sobre o vosso dorso.
Com a foice na mão, quando o sol é apenas fogo
e meditais no vosso esforço, na abundância
das espigas, no vosso
pão minguado,
talvez uma praga
vos suba
à flor dos lábios.
Com o eco remoto das histórico, das lendas,
procurareis reavivar as profecias
que se vos enraizaram no sangue.
E à hora do sol-pôr,
a caminho das eiras,
continuais a repetir: bom golpe de foice!


«Bom golpe de foice!»
e não temos a menor ideia
de como as palavras nos vieram despertar.
«Bom golpe de foice!»
como quem dá os bons-dias
«Bom golpe de foice!»
Na oficina, na mina, nos andaimes,
alguém ousou gritar: «bom golpe de foice!»
Bom golpe de foice, se nos regateiam o trigo,
bom golpe de foice!


Félix Cucurull

domingo, 22 de fevereiro de 2015

Ora porra! - Álvaro de Campos




Ora porra!

Então a imprensa portuguesa é
que é a imprensa portuguesa?
Então é esta merda que temos
que beber com os olhos?
Filhos da puta! Não, que nem
há puta que os parisse.

Álvaro de Campos