domingo, 30 de setembro de 2018

O Medo - Carlos Drummond de Andrade


O Medo
“Porque há para todos nós um problema sério…
Este problema é o do medo.”
António Cândido (“Plataforma de uma geração”).

Na verdade temos medo.
Nascemos no escuro.
As existências são poucas:
Carteiro, ditador, soldado.
Nosso destino, incompleto.

E fomos educados para o medo.
Cheiramos flores de medo.
Vestimos panos de medo.
De medo, vermelhos rios
nadamos.

Somos apenas uns homens
e a natureza traiu-nos.

Há as árvores, as fábricas,
doenças galopantes, fomes. 

Refugiamo-nos no amor,
este célebre sentimento,
e o amor faltou: chovia,
ventava, fazia frio em São Paulo.

Fazia frio em São Paulo...
Nevava.
O medo, com sua capa,
nos dissimula e nos berça. 

Estou com medo de ti,
meu companheiro moreno.
De nós, de vós, e de tudo.
Estou com medo da honra. 

Assim nos criam burgueses.
Nosso caminho: traçado.
Por que morrer em conjunto?
E se todos nós vivêssemos? 

Vem, harmonia do medo,
vem, ó terror das estradas,
susto na noite, receio
de águas poluídas. Muletas

do homem só. Ajudai-nos
lentos poderes do láudano.
Até a canção medrosa
se parte, se transe e cala-se

Faremos casas de medo,
duros tijolos de medo,
medrosos caules, repuxos,
ruas só de medo, e calma. 

E com asas de prudência,
com resplendores covardes,
atingiremos o cimo
de nossa cauta subida.

O medo, com sua física,
tanto produz: carcereiros,
edifícios, escritores,
este poema; outras vidas.

Tenhamos o maior pavor.
Os mais velhos compreendem.
O medo cristalizou-os.
Estátuas sábias, adeus.

Adeus: vamos para a frente,
recuando de olhos acesos.
Nossos filhos tão felizes...
Fiéis herdeiros do medo, 

eles povoam a cidade.
Depois da cidade, o mundo.
Depois do mundo, as estrelas,
dançando o baile do medo.


sexta-feira, 28 de setembro de 2018

ORAÇÃO – FRAGMENTOS - Cochat Osório



ORAÇÃO – FRAGMENTOS

Terra pobre senhor
não queremos mais,
com um pouco de fome,
igual à fome que hão-de ter os filhos,
e igual à fome que tiveram nossos pais.

Com rochas sem valor,
resistentes ao tempo,
ao vento,
ao pensamento,
e sem esplendor,
nem ouro, nem prata, ou cobre.

Que dê um pão minguado
e um pouco de certeza para assentar os pés.
Uma terra bem pobre
imunizada à praga do turismo,
que torne impraticável a cobiça
por não ter gemas, urânio ou manganês.

Uma terra que tenha o céu por cima r nada mais.
Disfarçada do mar
para não ser descoberta por ninguém,
dando apenas o mínimo preciso para viver,
sem petróleo também.

Uma terra onde o homem tenha o gosto,
de amassar o pão com o suor do rosto.

Senhor!
Faz um milagre que se veja.

Depois,
com essa terra abandonada
resto,
coisa,
nada,
Nós seremos felizes,
livres,
homens,
sem inveja ou cobiça de ninguém.

E sendo assim Senhor,
com tudo o que é preciso,
dignificado o suor no próprio paraíso,
podes fechar a porta da igreja
e ir embora Senhor.


quinta-feira, 27 de setembro de 2018

A Sombra das galeras - Alexandre Dáskalos

A Sombra das galeras

Ah! Angola, Angola, os teus filhos escravos
nas galeras correram as rotas do Mundo
Sangrentos os pés, por pedregosos trilhos
vinham do sertão, lá do sertão, lá bem do fundo
vergados ao peso das cargas enormes…

Chegavam às praias de areias argênteas
que se dão ao Sol ao abraço do mar…
… Que longa noite se perde na distância!

As cargas enormes
os corpos disformes.
Na praia, a febre, a sede, a morte, a ânsia
de ali descansar
Ah! As galeras! As galeras!
Espreitam o teu sono tão pesado
prostrado do torpor em que mal te arqueias.
Depois, apenas pestanejam as estrelas,
o suplício de arrastar dessas correias.

Escravo! Escravo!

O mar irado, a morte, a fome,
A vida… a terra… o lar… tudo distante.
De tão distante, tudo tão presente, presente
como na floresta à noite, ao longe, o brilho
duma fogueira acesa, ardendo no teu corpo
que de tão sentido, já não sente.

A América é bem teu filho
arrancado à força do teu ventre.

Depois outros destinos dos homens, outros rumos…
Angola vais na sede da conquista.
Hoje no entrechoque das civilizações antigas
essa figura primitiva se levanta
simples e altiva.
O seu cântico vem de longe e canta
ausências tristes de gerações passadas e cativas.
E onde vão seus rumos? Onde vão seus passos?
Ah! Vem, vem numa força hercúlea
gritar para os espaços
como os dardos do Sol ao Sol da vida
no vigor que em ti próprio reverberas:

Não sou cativo!
A minha alma é livre, é livre
enfim!
Liberto, liberto, vivo…

Mais… porque esperas?
Ah! Mata, mata no teu sangue
o presságio da sombra das galeras!