quarta-feira, 31 de janeiro de 2018

O DIABO - Jacques Brel


 
O DIABO

Prólogo:

Um dia o diabo veio à Terra, veio à Terra para vigiar os seus interesses...
O diabo viu tudo, o diabo ouviu tudo, e depois de tudo ter visto e de tudo ter ouvido, ele voltou para casa, lá em baixo...
E lá em baixo organizou um grande banquete, e no fim do banquete levantou-se e fez este discurso:

A coisa vai...
Um pouco por todo o lado há fogos a iluminar a Terra...
Os homens divertem-se como loucos nos perigosos jogos de guerra, a coisa vai...
Os comboios descarrilam estrondosamente porque uns tipos cheios de ideais metem bombas nos carris, o que faz mortos bem originais, mortos sem confissão, confissões sem remissão, a coisa vai...

Nada se vende, mas tudo se compra. A honra e mesmo a virtude... a coisa vai
Os Estados transformam-se, em segredo, em sociedades anónimas, a coisa vai...
Os grandes sacam os dólares que vêm das terras do tio Sam e a Europa repõe em cena “O Avaro”, com um cenário de mil e novecentos... Isto faz os mortos por inanição, e a inanição das nações, a coisa vai...

Os homens já viram tanta coisa que ficaram com os olhos baços, a coisa vai…
E já nem se canta pelas ruas de Paris, a coisa vai...
Chamam loucos aos honrados e palermas aos poetas, e nos jornais de todo o mundo, todos os pulhas têm a sua foto... Isto incomoda as pessoas honestas e diverte os desonestos... A coisa vai, a coisa vai....


Jacques Brel
1955

 
LE DIABLE (ÇA VA)
1955


PROLOGUE
Un jour, un jour le Diable vint sur terre,
un jour le Diable vint sur terre pour
surveiller ses intérêts, il a tout vu le
Diable, il a tout entendu, et après avoir
tout vu, après avoir tout entendu, il est
retourné chez lui, là-bas.
Et là-bas, on avait fait un grand banquet,
à la fin du banquet, il s'est levé le Diable,
il a prononcé un discours:

Ça va
Il y a toujours un peu partout
Des feux illuminant la terre
Ça va
Les hommes s'amusent comme des fous
Aux dangereux jeux de la guerre
Ça va
Les trains déraillent avec fracas
Parce que les gars pleins d'idéal
Mettent des bombes sur les voies
Ça fait des morts originales
Ça fait des morts sans confession
Des confessions sans rémission
Ça va

Rien ne se vend mais tout s'achète
L'honneur et même la sainteté
Ça va
Les États se muent en cachette
Les anonymes sociétés
Ça va
Les grands s'arrachent les dollars
Venus du pays des enfants
L'Europe répète l'Avare
Dans un décor de mil neuf cent
Ça fait des morts d'inanition
Et l'inanition des nations
Ça va

Les hommes ils en ont tant vu
Que leurs yeux sont devenus gris
Ça va
Et l'on ne chante même plus
Dans toutes les rues de Paris
Ça va
On traite les braves de fous
Et les poètes de nigauds
Mais dans les journaux de partout
Tous les salauds ont leur photo
Ça fait mal aux honnêtes gens
Et rire les malhonnêtes gens.
Ça va ça va ça va ça va.

terça-feira, 30 de janeiro de 2018

Lágrimas – flores - Paulo Quintela




Lágrimas – flores


Únicas flores que a alquimia dos anos
consegue destilar das flores da vossa cólera
jovem e generosa, maltratada
de injustiças e patas de cavalos,
de incompreensões cegas
de vencidas sabedorias contumazes –

Lágrimas
Lágrimas

Quando as flores que eu queria
pra juntar às vossas
eram rosas
de sangue de revolta.

(Junho de 1969)

segunda-feira, 29 de janeiro de 2018

Sobre tradução de poesia – Zbigniew Herbert

Sobre tradução de poesia

Zumbindo um besouro pousa
numa flor e encurva
o caule delgado
e anda por entre filas de pétalas folhas
de dicionários
e vai direito ao centro
do aroma e da doçura
e embora transtornado perca
o sentido do gosto
continua
até bater com a cabeça
no pistilo amarelo

e agora o difícil o mais extremo
penetrar floralmente através
dos cálices até
à raiz e depois bêbado e glorioso
zumbir forte:
penetrei dentro dentro dentro
e mostrar aos cépticos a cabeça
coberta de ouro
de pólen


Zbigniew Herbert
Tradução de Herberto Helder publicada a abrir o livro OUOLOF poemas mudados para português por Herberto Helder, Assírio & Alvim, Lisboa 1997.


SOBRE A TRADUÇÃO DE POESIA

Como um abelhão desajeitado
pousa numa flor
vergando o frágil caule
abre caminho com os cotovelos
através duma fileira de pétalas
através das folhas de um dicionário
quer chegar
onde se concentram a fragrância e a doçura
e embora esteja constipado
e sem gosto
continua a tentar
até que a cabeça choca
contra o pistilo amarelo

e não consegue ir mais longe
é tão duro
forçar a coroa
até chegar à raiz
por isso levanta voo
emerge pavoneando-se
zumbindo
eu estive lá
e aqueles
que não acreditam nisso
olhem para o seu nariz
amarelo de pólen.


Zbigniew Herbert
Versão de Jorge Sousa Braga a partir da versão inglesa de Czeslaw Milosz. Publicado em Zbigniew Herbert, Escolhido pelas Estrelas, antologia poética, Assírio & Alvim, Lisboa 2009.

sexta-feira, 26 de janeiro de 2018

A voz da terra - Costa Andrade


A voz da terra

Eu sei irmão que a tua dor
não posso avaliá-la exatamente
mas nasci com um caminho igual ao teu.

Isso me basta
para sentir na carne
as feridas que tu sentes e os anseios.
 

 em "Ontem e depois". Lisboa: Edições 70,1985.
Francisco Fernando Costa Andrade
Ndunduma wé Lépi,