terça-feira, 30 de julho de 2013

RETRATO DE ALVES REDOL - Ary dos Santos




RETRATO DE ALVES REDOL

Porém se por alguém não foi ninguém
cantou e disse flor canção amigo
a si o deve. A si a mais a quem
floriu cresceu cantou lutou consigo.

Homem que vive só não vive bem
morto que morre só é negativo
morrer é separar-se de ninguém
e contudo com todos ficar vivo.

Nado-vivo da morte. É isso. É isso.
Uma espécie de forno de bigorna
de corpo imorredoiro que transforma
em fusão o metal do compromisso:
marrar até morrer. E dar por isso.

José Carlos Ary dos Santos

terça-feira, 23 de julho de 2013

As Solicitações e Emboscadas


 Vendedor Ambulante - óleo de Mário Dionísio
As Solicitações e Emboscadas

Pode-se pintar com óleo
com petróleo ou aguarrás
Mas pode-se também pintar
com lágrimas silenciosas
No desprezo das horas odiosas
tanto faz
Mário Dionísio

sábado, 20 de julho de 2013

Os sabiás divinam - Manoel de Barros




A ciência pode classificar e nomear os órgãos de um
sabiá
mas não pode medir seus encantos.

A ciência não pode calcular quantos cavalos de força
existem
nos encantos de um sabiá.

Quem acumula muita informação perde o condão de
adivinhar: divinare.

Os sabiás divinam.

Manoel de Barros
 (Livro Sobre Nada)

quarta-feira, 17 de julho de 2013

CROCODILOS DANÇAM



caravaggio

POETURA — ii
(CARAVAGGIO — ii)
POEMA DE QUINTA-FEIRA SANTA
CROCODILOS DANÇAM

Quando os nos­sos ami­gos se sen­tam
À
mesa dos nos­sos ini­mi­gos
Enquanto avan­ça­mos com tanta difi­cul­dade
Pois se Deus par­tiu rode­ado dos anjos e das suas espa­das
E
nem nos dei­xou uma con­cha de luz que se pudesse beber
Com tanta difi­cul­dade e a água bar­renta pela cin­tura
A pas­sos len­tos
sobre a areia mole
Quando os nos­sos ami­gos se sen­tam
À
mesa dos nos­sos ini­mi­gos
Pré-históricos cro­co­di­los dan­çam
Imen­sos de san­gue
frio e os den­tes
Cheios do riso de quem nos vai comer
Dan­çam con­ten­
tes para depois bem cho­rar:
Gosto tanto dele é tão bom faz tão bem
E
nós sur­pre­en­di­dos no estô­mago da besta
Peque­
nos demais deglu­ti­dos tra­ba­lha­dos a ácidos
Ainda per­gun­ta­mos
Ini­
mi­gos eu trai­ção porquê se um grão é nada
Um grão é nada ape­nas se não for semente

(publicado por Eugénia de Vasconcelos)

terça-feira, 16 de julho de 2013

ROCÍO MARQUEZ LIMÓN - 8 minutos de emoção

ROCÍO MARQUEZ LIMÓN
8 minutos de emoção
Rocío Márquez Limón tem uma das mais belas vozes do flamenco.
É andaluza de Huelva e cidadã
militante.
A cantora esteve na poço de Santa Cruz del Sil (Léon) e cantou para os mineiros.

segunda-feira, 15 de julho de 2013

Millôr Fernandes - o futuro



Nunca soube por que tanta gente teme o futuro.
Nunca vi o futuro matar ninguém,
Nunca vi o futuro roubar ninguém,
Nunca vi nada que tivesse acontecido no futuro.
Terrível é o passado ou, pior, o presente!
 

Millôr Fernandes

sexta-feira, 12 de julho de 2013

ONDE FOI - Fernando Martinho

ONDE FOI

Onde foi
que um dia
a limpidez
teve o sangue do ultraje
no rosto
e não houve ninguém
um lenço sequer
para lho ir limpar?

Fernando Martinho
In Poetas Alentejanos do Séc. XX

quarta-feira, 10 de julho de 2013

SENTADOS EM ADOS



SENTADOS EM ADOS

1

Os escritores da minha geração
quarenta anos bem ou mal contados
estão todos sentados
salvo esta aquela excepção

Cordatos
cautelosos
acautelados

A prosa grandemente
alcatifada
engordada
instalada

O verso nem nem
espartilhado
acobardado
angustiado

A peça pra ser levada
inutilmente
previdente
decadente

Sentados muito sentados
a reforma assegurada

a glória garantida
prá vida e prá morte

Vidinha sem sobressaltos
acomodada rendimento certo
que a luta é inglória
a morte é injusta
e pode estar perto

Sentados muito sentados
impotentes
desistentes
prudentes

Sentados muito sentados
moldados
calafetados
disciplinados
condecorados
associados
retirados
domesticados
assexuados
galardoados
programados
recomendados
canonizados
capados
coitados

2

A pintura para quem
a pintura para quê
pintura abstracionada
pintura cotação interna
produzida pra consumo
pintura de costas voltadas
a pintura destinada
pra capitalista ver
a pintura pintada
maratona sprint
oferta procura

Os pintores nas tintas sentados
encaixilhados
despovoados
emoldurados
enquadrados
pendurados
leiloados

Armindo Mendes Carvalho

segunda-feira, 8 de julho de 2013

Manuel António Pina

Chico

Talvez não fosses forte
para a felicidade,
nem para o medo.

Olha as pessoas felizes:
ocultam-se na
felicidade
como em casa, erguem

muros, fecham as janelas,
o
medo
é a
sua fortaleza.

O
que disputam à morte
é
maior que elas,
a
morte não lhes basta.

Manuel António Pina
in "Cuidados Intensivos






sábado, 6 de julho de 2013

JOÃO GUIMARÃES ROSA

Um dos maiores ourives da palavra…”

Permito-me partilhar convosco a alegria deste reencontro com João Guimarães Rosa, escritor que tão grande contributo deu na construção da língua portuguesa.

Em meus textos.
quero
chocar o leitor,
não deixar que ele repouse
na
bengala dos lugares-comuns,
das
expressões acostumadas
e domesticadas.
Quero obrigá-lo a
sentir
uma
novidade nas palavras.”

Aquilo saía gemido e tremido, e vinha bulir com o coração da gente, mas era forte demais. Octaviano pediu a seu Saulinho para mandar o pretinho calar a boca. Mas seu Saulinho tinha tirado da algibeira o retrato da patroa, e ficou espiando, mais as cartasPorque seu Saulinho não sabia ler, mas gostava de receber cartas da mulher, e não deixava ninguém ler para ele: abria e ficava olhando as letras, calado e alegre, um tempão…”
(in Sagarana)

--- “Quando tudo era falante… No centro deste sertão e de todos. Havia o homem --- a coroa e o rei do reino --- sobre grande e ilustre fazenda, senhor de cabedal e possanças, barba branca para coçar. Largos campos, fim das terras, essas províncias de serra, pastagens de vacaria, o urro dos marruás. A Fazenda Lei do Mundo, no campo do Seu PensarVelho homem morreu, ficou o herdeiro filho
Nos pastos mais de longe da Fazenda, vevia um boi, que era o Boi Bonito, vaqueiro nenhum não aguentava trazer no curral
O sinal desse boi era: branco leite, cor de flor. Não tinha marca de ferro. Chifre de bom parecer. Nos verdes onde pastava, tantos pássaros a cantar.
(in Manuelzão e Miguilim)

 
JOÃO GUIMARÃES ROSA
1908 – 1967