domingo, 30 de junho de 2019

POEMA DE ORLANDO DA COSTA PARA MARIA LAMAS





Porque trazes na voz a voz das companheiras
Companheira te chamamos

Porque no teu olhar se alargam os olhos que semeiam e vigiam
o sol a todas as alturas, o sol dos meninos e das colheitas
Porque nele se tornam mais límpidos os olhos das namoradas
Companheira te chamamos

Porque nele gelam as lágrimas do medo e da dor
Gelam e estalam desfeitas num pranto de calor
Porque nos teus olhos continuam acesos os olhos vendados de encontro às paredes

Porque trazes no peito o sopro das nossas irmãs
O sopro resoluto do trabalho, o verde e dourado sopro que branqueia o pão
O sopro das que amam
E amando crescem e envelhecem ao nosso lado
Das que amam
E amando tombam em cada dia num só momento por milhões partilhado

Porque caminhas na terra dividida
Por uma estrada aberta pelo esforço dos povos
Onde cada presença é um apelo e cada apelo uma conquista
Porque até o sol remoça na neve tranquila dos teus cabelos
E o vento sopra-te com a mesma força que a nós
Companheira te chamamos

Porque as palavras na tua boca
Têm a medida do mundo e a face dos mortais
Porque no teu ventre a fome e a vida se completam
Porque no teu rosto fala o tempo até nós
Mãe te chamaríamos
Companheira te chamamos.
Poema de 1955, à data com publicação proibida
in Sete Odes do Canto Comum
(guardado no espólio da PIDE, na Torre do Tombo),
 recolhido pela Doutora Regina Marques,
lido na Homenagem a Maria Lamas,
na Biblioteca-Museu República e Resistência

sábado, 29 de junho de 2019

Eis-me aqui - Olinda Beja

Eis-me aqui


Estou aqui
a contar-te dos caminhos que percorro
velhos   estreitos   esventrados
caminhos de sulcos e de cabras onde
nossos avós colheram pão de côdea dura
estou aqui
a contar-te dos cheiros doces e acres
dos frutos tropicais
cheiros que se foram confundindo no sangue
que se afundou em docas e mares mas emergiu
mais vermelho que o chão da nossa terra
estou aqui inteira   viva   irrequieta como pássaro
que acasala no equilíbrio de um ramo
e como tu quero ferir meus pés
no lençol de pedras que atapeta o ôbô
inundar de algas azuis o corpo reflectido
no espelho das calemas
estou aqui para escutar o vento no zinco dos casebres
e exorcisar os medos que vagueiam na linguagem do povo

estou aqui como tu
borboleta tricolor que pousa no eco das muralhas
e morre a ouvir histórias de um país calcinado.
 

quinta-feira, 27 de junho de 2019

O ALENTEJO CANÇÃO - Manuel da Fonseca

O ALENTEJO

                  CANÇÃO

Num ano de grande fome,
minha família acabou-se.

Eu tinha uma boa enxada
donde tirava o sustento,
ia-me de monte em monte
chegava à porta e dizia:
- lavrador,
eu cavo-lhe a sua herdade!
E no meio das courelas, a minha enxada luzia.
Viesse o sol que viesse
e a chuva que caísse
e o vento, que vem do norte
e corta como uma foice,
que assobiasse e cortasse:
- a minha enxada luzia!

E a minha filha crescia,
estava uma moça vistosa.
Tanto que os homens saíam
para a porta das tabernas
dizendo ao vê-la passar:
- lá vai a Rosa Charneca.
E minha mulher cantava
estendendo a roupa, a corar,
sobre esteveiras, ao sol.

Quando veio a grande fome
tudo isto se acabou.

Minha mulher foi prà monda
lá para o Alto Alentejo.
E a minha filha abalou
com uma mulher que ri
e anda de feira em feira
armando aquela barraca
onde se bebe e se ama.

E numa manhã de Inverno,
não pude mais e parti
- pelas estradas do acaso
com a manta de maltês!...

Manuel da Fonseca


in “Poemas Completos”, O vagabundo e outros motivos alentejanos, pg 41)


quarta-feira, 26 de junho de 2019

O operário da utopia - Affonso Romano de Sant'Anna


26 de junho: Dia Internacional de Luta Contra a Tortura


O operário da utopia
  
Apanhado em meio à noite,
jogado ao chão da cela,
o corpo nu conhece
a primeira humilhação.
Outras virão: o soco,
o choque, a ameaça,
o urro na escuridão.

— Quantos volts
suporta um corpo
— em coação,
até que dele escorra o fel
da delação?

— O que procura o tortura/dor
nas pedras do rim alheio
como vil minera/dor?
— O que ama esse ama/dor
da morte?
esse morcego suga/dor
sob os porões da corte?
esse joga/dor
do jogo bruto
e cria/dor
do luto?

O tortura/dor se sente, e acaso o é,
um trabalha/dor diferente:
seu trabalho é destruir
o sonha/dor insistente,
como o médico que resolvesse
matar de dor
— o cliente.

Mas sob a tortura
o que há de melhor no homem
jamais se manifesta. Quando muito
podeis catar no chão
o pouco que dele resta.
Mas soltai-o em festa, ao sol,
e vereis que a verdade
de seus gestos se irradia.
Livre
vestindo a pele do dia
o torturado caminha
com seu corpo tatuado
de violência e poesia.

Mas ele não marcha só.
Apenas segue na frente
na direção da utopia.