quinta-feira, 30 de abril de 2015

Para vós o meu canto... - Sidónio Muralha



Para vós o meu canto...

Para vós o meu canto, companheiros da vida!
Vós, que tendes os olhos profundos e abertos,
vós, para quem não existe batalha perdida,
nem desmedida amargura,
nem aridez nos desertos;
vós, que modificais um leito dum rio;
- nos dias difíceis sem literatura,
penso em vós: e confio;
penso em mim e confio;
- para vós os meus versos, companheiros da vida!
Se canto os búzios, que falam dos clamores,
das pragas imensas lançadas ao mar
e da fome dos pescadores, 
- penso em vós, companheiros,
que trazeis outros búzios para cantar...
Acuso as falas e os gestos inúteis;
aponto as ruas tristes da cidade
a crivo de bocejos as meninas fúteis...
Mas penso em vós e creio em vós, irmãos,
que trazeis ruas com outra claridade
e outro calor no apertar das mãos.
E vou convosco. - Definido e preciso,
erguido ao alto como um grito de guerra,
à espera do Dia de Juízo...
Que o Dia do Juízo
não é no céu... é na Terra!

 Sidónio Muralha

terça-feira, 28 de abril de 2015

José Gomes Ferreira / Gabriel Celaya




Dois poetas, dois idiomas,
a mesma preocupação: OS OUTROS!

(Um momento de filosofia barata.)

Para além do «ser ou não ser» dos problemas ocos,
o que importa é isto:
- Penso nos outros.
Logo existo.
José Gomes Ferreira
  “Poeta Militante I”

 *      *       *

MI  LOCURA

Después de mucho andar, mucho perder, mucho luchar,
me dicen: «Para qué?»
Yo digo simplemente: «Para vivir mejor.»
Me dicen: «Cómo es eso,
si tú vives bien? Qué más quieres, di?»
Yo digo en tonto: «No sé.»
Pero es claro lo que quiero para todos,
y me digo por lo bajo: «Pues sí que estamos bien!»
Y sigo trabajando más que tonto
por una gloria total,
con inocencia,
y a veces con tan alta claridad,
que esa luz casi parece una ferocidad.

Gabriel Celaya
“El hilo rojo”


domingo, 26 de abril de 2015

O Medo - Carlos Drummond de Andrade



O Medo
A António Cândido
“Porque há para todos nós um problema sério…
Este problema é o do medo.”
António Cândido (“Plataforma de uma geração”).
Na verdade temos medo.
Nascemos no escuro.
As existências são poucas:
Carteiro, ditador, soldado.
Nosso destino, incompleto.
E fomos educados para o medo.
Cheiramos flores de medo.
Vestimos panos de medo.
De medo, vermelhos rios
nadamos.
Somos apenas uns homens
e a natureza traiu-nos.
Há as árvores, as fábricas,
doenças galopantes, fomes.
Refugiamo-nos no amor,
este célebre sentimento,
e o amor faltou: chovia,
ventava, fazia frio em São Paulo.
Fazia frio em São Paulo...
Nevava.
O medo, com sua capa,
nos dissimula e nos berça.
Estou com medo de ti,
meu companheiro moreno.
De nós, de vós, e de tudo.
Estou com medo da honra.
Assim nos criam burgueses.
Nosso caminho: traçado.
Por que morrer em conjunto?
E se todos nós vivêssemos?
Vem, harmonia do medo,
vem, ó terror das estradas,
susto na noite, receio
de águas poluídas. Muletas
do homem só. Ajudai-nos
lentos poderes do láudano.
Até a canção medrosa
se parte, se transe e cala-se.
Faremos casas de medo,
duros tijolos de medo,
medrosos caules, repuxos,
ruas só de medo, e calma.
E com asas de prudência,
com resplendores covardes,
atingiremos o cimo
de nossa cauta subida.

O medo, com sua física,
tanto produz: carcereiros,
edifícios, escritores,
este poema; outras vidas.

Tenhamos o maior pavor.
Os mais velhos compreendem.
O medo cristalizou-os.
Estátuas sábias, adeus.
Adeus: vamos para a frente,
recuando de olhos acesos.
Nossos filhos tão felizes...
Fiéis herdeiros do medo,
eles povoam a cidade.
Depois da cidade, o mundo.
Depois do mundo, as estrelas,
dançando o baile do medo.

Carlos Drummond de Andrade

quinta-feira, 23 de abril de 2015

ISSO - Armando Silva Carvalho




ISSO

É isso. O intemporal
vai suportar-nos tudo.
As armas débeis, a cólera cansada,
o pulso que se perde,
a mesma porta.
Quando o outro dizia
Abril o mais cruel dos meses
estaria a somar londrinas primaveras
ou a olhar do salão
simplesmente
as litografias?


Armando Silva Carvalho