Era uma vezumcaso. O caso de Lenito, que conduziu do Barreiroaté Sintra e quequando chegou ao destino morreu de enfarte.
Na minhahumilde e terrenamodéstia pergunto: porque teve ele de fazer aquela viagem, fechado no carro, parado nosengarrafamentos da ponte e da A19 paradepoismorrer? Nãopoderiater morrido antes? Nãolhe podia ter sido poupado o sacrifício da viagem?
Quesentido de humorsinistrogoverna a perversidade do destinoindividual de todas as personagensque se mexem à nossavolta?
É queconduzir do Barreiroaté Sintra eraperfeitamentedispensável. E tudoparaquê? Porquê?
EraPáscoa, diadez de Março, e a tradição instituída no anoanterior obrigava-o a jantar na casa da mãe, em Setúbal; a dormir na casa da irmã, no Barreiro, na véspera, e almoçar na casa da sogra, em Sintra, no domingo. Vendo bem, era uma tradiçãomaisconveniente do que a dos trêsanosanteriores, com a obrigação de ir a Viseu almoçar a casa dos pais da sogra. A morte dos mesmos num acidente de viação, emLagos, no Verão, deslocara o centro da Páscoa de Viseu para Sintra. Abençoada.
O que o surpreendia era a falta de argumentossempreque se decidia o itineráriopara a Páscoa, queera tradicional, comoeraóbvio. Intocável e sagrado. O quelhe apetecia mesmo, todos os anos, eralargartudo e ficaremcasa, semfalar, ouirpara uma praia o maislongepossível de Viseu, de Sintra ou de Lagos. Mas acabava sempreporceder. Os miúdos…
Ela tratava de tudo. Amêndoas, ovos de chocolate, a escola deles, os castigospara as más notas, as repreensões, a família dele e os pais dela, irmãos, cunhados, amigos. E depois deixava-se ficarjunto da mãe à esperaqueele, o motoristaque a foralevar, regressasse a horaspara o almoço de famíliadepois de cumprir o programa de festasem Setúbal e no Barreiro.
O quemais gostava era o alíviodepois de tudoacabar, e voltar ao seusofá, na suasala de estar, na suacasa, no becomaisestreito do bairro da Socasa, entre a escola e o prado.
Emgeral, emFevereiro definia-se a estratégia. Ele tentava sempresugerir a alternativahabitual: de fazer uma Páscoadiferente, mas a respostaerasempre a mesma. Quedisparate! Queria matar a mãe de desgosto? E depois, os miúdos, que tinham de ver a avó, queelanunca os via, queera uma pena. Quetalvez no anoseguinte se pensasse nisso, ouquando os miúdos fossem mais crescidos. Seria inconvenientenãoirver a senhora a Viseu ou a Sintra. E ele a guiar.
E assim foi. Sexta-feira, feriado, carregou o carro de sacos e fez o trajecto habitualaté Setúbal. A mãe, na mesma. Queixosa. Quenunca a visitavam. E como estavam os miúdos. Jánão os conhecia. E a irmã, no Barreiro, nuncalá ia. E os filhos dela, se bemqueum deles erasó dela e não dele, mashojeemdia as coisas eram diferentes. Sairparaver o mar? Nempensar. A saúdenão o permitia. Quandomuitoumgalão no café da esquina.
Pouco a pouco, o monólogo dava lugar ao silêncio e o queixume à cumplicidade. Nuncamais ouviste falar dele? Não. E ficavam poraí.
E assim se passava a sexta-feira e o sábado, diaqueeraocupado no hipermercado, a ajudar a mãe nas compras e a carregar o carro de maissacos: hortaliçapara a irmã, frutapara os pequenos, pacotes de leite. E lá a deixava, curvada, junto à porta de alumínio a acenar. Até à próxima, no Natal.
O jantar na casa da irmã eracomo uma injecção indolordada num hospitalparticularondetodos os doentessãoigualmentebemtratados, desdeque paguem. Jantavam, viam um DVD escolhido pelomaisnovo e iam-se deitar. Dormia no sofá da sala, com repetidas recomendaçõesparanão se levantar no meio da noiteparanãoacordar os miúdos. De manhã levantava-se e comia de acordocom o horário e a ementa do maisnovo, saíam para o parque do jardimmaispróximo e ali ficavam presosdentro do gradeamento de plástico colorido a transportar o maisnovo do baloiço grafitado de verdepara o escorrega grafitado de azul. Almoçavam no McDonald’s, presente do tio, e ainda deixava umchequeparaajudar na comida. Ele, é claro, não podia comerpoistinha de estarem Sintra uma horadepoispara o almoço.
E assim, do Barreiropara Sintra, o Lenito voava, ultrapassando peladireita se fosse necessário, parando nas habituaisfilas, mastigando pastilhaelástica.
Nesse dia, chegado a Sintra foi recebido com o olharfrio da mulher. Atrasara-se meiahora e a sogra gostava de comer a horas. O borregotinha perdido a graça. E foi nesse momentoque se sentiu mal. Sentou-se num banco de pedrajunto à entrada e pediu umcopocomágua. Quedisparate, iam almoçar! Umavião riscava o céu, ao longe. As abelhas zumbiam fazendo a ronda a umcacho da glicínia rosaque trepava ao longo da parede caiada. O resto… O resto foi fulminante.
E o Lenito passou a sermaisumnúmeropara as estatísticas.
Quando uma empresa que em 2007 apresentou 741,9 milhões de lucro e distribuiu "o prémio especial OPA (4,98 milhões de euros) por três ou quatro administradores, mais o prémio de performance no valor de 3,693 milhões de euros, atribuídos aos sete Administradores, perfazendo 8,673 milhões, quantia muito superior ao aumento anual que todos os trabalhadores do grupo auferiram nesse ano, a inauguração dos "espaços Snack" para os "colaboradores" (já não há trabalhadores) aquecerem a paparoca que trazem de casa já não é só ofensivo: é ridículo!
E quando da inauguração do citado espaço Snack para que os colaboradores (ou marmiteiros) possam aquecer a comidinha que trazem de casa, recordei o Américo Thomaz a botar faladura quando inaugurava dos fontanários:
«Esta inauguração é mais um passo que damos no sentido de tornar as condições de trabalho que damos aos colaboradores o melhor possível, particularmente no actual enquadramento que vivemos e que é difícil. Vamos proporcionar aos colaboradores a possibilidade de trazer comida de casa e de usufruírem de boas condições. É mais uma demonstração que a empresa está preocupada com a responsabilidade social interna e com o bem-estar dos colaboradores». Explicou Francisco Nunes, administrador da PT."
De seguida o motorista te-lo-ia levado a um restaurante de muitas estrelas.