MISE AU POINT
de
Cochat Osório
O que é que eles querem mais?
É tudo?
Levem tudo então.
Podem levar aquilo que puderem.
Levem também o resto.
Mas não!
O resto não.
Para levar o resto que sou eu.
Não é bem isso,
O que sobra daquilo que sou eu,
Não é também,
Só o que tenho a mais para ser eu...
Em conclusão:
Para levarem o saldo
Precisam da força que não têm,
Precisam da guerra que não têm
Precisavam de ter um coração.
Mas podem levar tudo.
E o resto
O eu.
Ficarei quieto, calmo, cego e mudo
Principalmente mudo.
Não serei eu.
Já sei,
Bem sei.
E não farei o mínimo protesto.
Com uma condição:
Deixem ficar apenas o vazio,
O silêncio concreto,
Espesso, opaco.
O silêncio que ofende,
Ou dá a esta vida
Um riso intencional
E áspero
E incorrecto
E frio
Mas é apenas quando se por acaso ri.
Hei-de fincar com força os dentes
Na polpa saborosa e farta do silêncio
Deste silêncio cheio de todas as matérias-primas
Que se gastam para fazer o nada,
E com o nada aberto ao meio, como um pão
A facada de (gula?) amordaçada
Numa fatia grossa de outro nada para recheio
Hei-de sentir a força alimentada
E a experiência do meu velho tempo gasto
Usado e gasto
Que (ensina?)
Sabor sem conteúdo,
Nada a fingir de tudo
Café sem cafeína
Mas é preciso
Hei-de tirar do nada a força de um sorriso,
Hei-de cumprir a minha sina!
Eu gosto do silêncio com silêncio
Cru e sem tempero
Estar nu, dá a noção exacta do princípio
Faz rebentar vontades de infinito
A certeza do zero.
Isto, porque o melhor é começar e não partir do meio.
É que o princípio é tudo o que virá depois
E ainda não veio,
É partir de viagem, sem saudades nem remorsos
E também sem bagagem.
Levem portanto tudo quanto existe.
Os livros velhos não...
Pelo menos os livros muito lidos não…
Os livros muito gastos pelos olhos não…
Esses que deram sumo a esta insaciedade que não finda
Podem servir-me de aconchego
Podem dizer o que me falta
Podem conter um resto de substância ainda.
Deixem ficar os livros muito lidos só.
Não!
Nem esses quero já
Não quero nada.
O que ficar na solidão
Terá um cheiro de velas apagadas
De compaixão e dó.
As palavras também, fiquem com elas
Hei-de arranjar palavras novas
Simples, rasgadas, abertas de par em par
Sobre a verdade
E o pensamento debruçado nelas
Puro, limpo, vivo
Sentir o ar fresco das manhãs
E a magia das noites de luar a entrar pelas janelas.
Palavras novas, sim, concretas
Que estruturem verdades conscientes
Que sejam palavras claras de gente.
Essas que andam ai nos jornais, nos discursos
Caricaturas de palavras sepulturas
Sarcófagos de ideias já passadas
Rótulos, formulas
Vazio impresso, colado em frascos de purgante
De bom-tom e bem pensante.
Essas palavras todas podem levá-las
Para encher o silêncio, o vazio e o nada.
Se não tiver palavras novas
Hei-de inventá-las
Palavras impelidas pela força imensa de serem
O que são e de saberem sempre aonde se dirigem
Com elas
Falarei a linguagem necessária
Aos contactos dos homens regressados à origem
O corpo. Também. Aguentará quanto puder
Projectores sobre os olhos
Jorros de água na nuca
Queimaduras na carne
Ou deixem-no de pé
Sem repouso de pé
Sem respeito de pé
Sem piedade e pé
Sonâmbulo de sono e de cansaço de pé
Farrapo humano a oscilar ( ? ) deixo de pé
E deixem-no estar de pé
Deixem-no estar a pé
Que falhe o coração ou a vontade
Ou vença, ou quebre, ou fale
Ou se liberte do martírio a rebentar os pés.
Pouco importa.
Levem tudo o que houver
Tudo quanto agarrar essa ganância desmedida
Mas é bom que não esqueça:
Que o regresso começa um tudo-nada antes da partida
Está no que fica
No que ninguém destrói
No que os outros recordam só por recordar
Nas pegadas, na lama que secou
Na saudade
Na angústia
Esta esperança de voltar
E a certeza de encontrar
Um lugar posto na mesa
E o direito de ficar.
Não sendo assim
Melhor é não voltar
E não bater às portas
Não acordar as velhas ilusões que já estão mortas
Melhor é ser um estranho para todos
Os que esqueceram
Os que não querem
Os que não lembram já.
Melhor é ser ausente e já presente
Partido para sempre e já chegado
Com o tempo cortado na ponta da indiferença
E partir pelo mundo ao deus-dará
E tentar renascer
Para estar só
É preferível estar só noutro sítio qualquer
E eu sei que fico sempre e hei-de voltar
O que deixei de mim e o que sobre de mim para falar
Só por isso volto
Porque não se partiu completamente
Porque não se quebrou o fio do contacto
Que une um homem sempre ao outro homem
E que lhe dá o sentido de conjunto
O lugar na multidão
O direito de ser gente
Eu sei que estas palavras gastas uma a uma
Palavras de um rosário de orações humanas
São o rasto indelével da passagem de um homem
Que vibrou e que viveu
São um resto de mim
O que sobra
O saldo a transportar
Direito de voltar e ser ainda um homem
Seja qual for o mundo que vier
Só por isso apenas porque fico
Não me importa que levem ou deixem o que querem levar
Basta o silêncio vazio e o nada
Basta uma noite triste e amargurada
Uma esperança, uma dúvida, um receio
Para saber que nada se perdeu
Voltarei nas palavras renascidas
Voltarei nas cadências revividas
Nas verdades gritadas
Nas canções abafadas
No ritmo, ritmo, ritmo
Neste oceano de ritmos
Que a minha voz criou, a razão embalou, e o coração já deu.
O que é que eles querem mais?
Tudo?
Levem tudo então
Voltem atrás
Procurem mais
Deitem a mão a tudo quanto há
Partam com a certeza consolada
De não deixar restos de nada
De que nada esqueceu
Há-de ficar apenas o silêncio
Esta ideia de ausência consumida
Esse resto de vida mutilada
Que é a vossa presença, que é o vosso progresso
Que é o vosso labéu
E então
O que brotar depois será o meu regresso
E quando grito meu
É porque eu sei que ele é também dos outros
Todos os que exigiram dignidade
Todos os que perderam até a vida
Todos os que o silêncio tornou esperança
Todos os que a ganância não venceu
O que brotar depois será sempre um regresso
E no regresso
Eu!