sábado, 30 de maio de 2009

Cesário Verde



Desastre

Ele ia numa maca, em ânsias, contrafeito,

Soltando fundos ais e trémulos queixumes;

Caíra dum andaime e dera com o peito,

Pesada e secamente, em cima duns tapumes.

A brisa que balouça as árvores das praças,

Como uma mãe erguia ao leito os cortinados,

E dentro eu divisei o ungido das desgraças,

Trazendo em sangue negro os membros ensopados.

Um preto, que sustinha o peso dum varal,

Chorava ao murmurar-lhe: «Homem não desfaleça!»

E um lenço esfarrapado em volta da cabeça

Talvez lhe aumentasse a febre cerebral.

Flanavam pelo Aterro os dândis e as cocottes,

Corriam char-à-bancs cheios de passageiros

E ouviam-se canções e estalos de chicotes,

Junto à maré, no Tejo, e as pragas dos cocheiros.

Viam-se os quarteirões da Baixa: um bom poeta,

A rir e a conversar numa cervejaria,

Gritava para alguns: «Que cena tão faceta!

Reparem! Que episódio!» Ele já não gemia.

Findara honradamente. As lutas, afinal,

Deixavam repousar essa criança escrava,

E a gente da província, atónita, exclamava:

«Que providência! Deus! Lá vai para o hospital!»

Por onde o morto passa há grupos, murmurinhos;

Mornas essências vêm de uma perfumaria,

E cheira a peixe frito um armazém de vinhos,

Numa travessa escura em que não entra o dia!

Um fidalgo brada a duas prostitutas:

«Que espantos! Um rapaz servente de pedreiro!»

Bisonhos, devagar, passeiam uns recrutas

E conta-se o que foi na loja dum barbeiro.

Era enjeitado, o pobre. E, para não morrer,

De bagas de suor tinha uma vida cheia;

Levava a um quarto andar cochos de cal e areia,

Não conhecera os pais, nem aprendera a ler.

Depois da sesta, um pouco estonteado e fraco,

Sentira a exalação da tarde abafadiça;

Quebravam-lhe o corpinho o fumo do tabaco

E o fato remendado e sujo da caliça.

Gastara o seu salário – oito vinténs ou menos -,

Ao longe o mar, que abismo! E o sol, que labareda!

«Os vultos, lá em baixo, oh! Como são pequenos!»

E estremeceu, rolou nas atracções da queda.

O mísero a doença, as privações cruéis

Soubera repelir – ataques desumanos!

Chamavam-lhe garoto! E apenas com seis anos

Andara a apregoar diários de dez-réis.

Anoitecia então. O féretro sinistro

Cruzou com um coupé seguido dum correio,

E um democrata disse: «Aonde irás, ministro!

Comprar um eleitor? Adormecer num seio?»

E eu tive uma suspeita. Aquele cavalheiro,

- Conservador, que esmaga o povo com impostos -,

Mandava arremessar – que gozo! Estar solteiro! –

Os filhos naturais à roda dos expostos …

Mas não, não pode ser … Deite-se um grande véu …

De resto, a dignidade e a corrupção … que sonhos!

Todos os figurões cortejam-no risonhos

E um padre que ali vai tirou-lhe o solidéu.

E o desgraçado? Ah! Ah! Foi para a vala imensa,

Na tumba, e sem o adeus dos rudes camaradas:

Isto porque o patrão negou-lhes a licença,

O Inverno estava à porta e as obras atrasadas.

E antes, ao soletrar a narração do facto,

Vinda numa local hipócrita e ligeira,

Berrara ao empreiteiro, um tanto estupefacto:

«Morreu!? Pois não caísse! Alguma bebedeira!»

Cesário Verde

1875

terça-feira, 26 de maio de 2009

Sondar as sondagens



VAMOS SONDÁ-LOS?

Sondar alguém, interrogá-lo cautelosamente, isto é, sem revelar intenção, a fim de colher dele informações que se pretendem.”

(Grande Dicionário da Língua Portuguesa)

O senhor Júlio nunca tinha sido sondado, pensava ele. Tão pouco imaginava como se apresentava um sondador. Não sabia sequer se um sondador era sondável.

Face às sondagens diárias, o homem andava em pânico.

Sem revelar intenção!...”. Será que havia sido sondado sem disso se aperceber?

Se lhe telefonavam, de imediato não se identificava, e ao sair à rua sentia o desconforto de alguém que está a ser seguido.

Sabia que para ser sondado não se podia aperceber que o estava sendo, e não conhecia ninguém que o tivesse sido. Entretanto, com a impertinência da melga e a pertinácia da formiga, as sondagens cercavam-no abafando-o, procurando sufocar a sua capacidade de discernimento.

Númerosaparentementecontraditórios são-lhe diariamente derramados por todos os periódicos, com especial relevância para os semanários, caixas de ressonância amplificadas e ampliadas ainda nas rádios e nas televisões, servindo de repasto aos comentadores que as dissecam e manipulam.

Fórmulas mágicas de ficção que transmudam a realidade em desejos: As sondagens...

Porquê esta doentia perseguição do real? Será que o duque de Bragança D. João IV, teria chegado ao poder se os Filipes detivessem esta terrível arma? Felizmente que conseguimos a nossa independência antes deste flagelo.

Preocupado refugiei-me em Fernando Pessoa, “a minha língua é a minha Pátria”, e deleitado percorri à velocidade duma correcta apreensão os “Poemas de Álvaro de Campos” da Edição Crítica de Fernando Pessoa, Volume ll.. Era tarde, e quando ao chegar à página 292 me preparava para recomeçar este escrito, depara-se-me este desabafo de revolta de um Álvaro de Campos, que considera “Toda a realidade um excesso, uma violência” e lança este grito de revolta, esta pedrada irreverente:

Ora porra!

Então a imprensa portugueza

é que é a imprensa portugueza?

Então é esta merda que temos

que beber com os olhos?

Filhos da puta! Não, que nem

há puta que os parisse.

Calculem como não seria a imprensa na terceira década do século passado e como foi longo o caminho para chegarmos ao mesmo.

Volto às sondagens. Por entre jornais e papelada vária, procuro a publicação que o carteiro me trouxera hoje “Manière de voir 27”. Assinatura que aguardo sempre com ansiedade. Publicação trimestral, desta vez com um titulo sugestivo e oportunoMédias et Contrôle des Esprits”.

Posto de lado o “inconveniente?” Pessoa, retiro o invólucro à revista esperada. Em cada página um grito, uma advertência, um alerta, uma acusação a um nível superior de apreciação:

“A utilização sistemática das sondagens e a sua retoma pelos grandes medias intimidam as pessoas, culpabilizando-as de não pensarem “como deve ser”. O debate é escamoteado e a democracia desfigurada.”

E Emmanuel Souchier et Yves Jeanneret continuam:

“O uso selvagem das sondagens esvaziou o debate político, eclipsou os programas, dissolveu a fidelidade, baniu a vontade. Entretanto o homem político orienta as suas escolhas e inflecte a sua acção em função dos gráficos de popularidade. A opinião reinante é legitimada sob a capa da ciência.”

E os dois jornalistas interrogam-se:

“A democracia pode satisfazer-se com esta demagogia tecnocrática?”.

Mais seguro que o controlo dos comportamentos é a droga doce: “A “repetição” da sondagem “estabelece a tirania” e esvazia a vida política dos seus compostos essenciais”.

E concluindo uma análise impossível de sintetizar:

Tornada mediamétrica, a democracia deverá fatalmente tornar-se numa mediocracia?”.

Noutra recente publicação “Élections et Télévision” um grupo de especialistas coloca e responde a estas questões: Como é que no decurso de uma campanha eleitoral se articulam três temíveis técnicas de manipulação: televisão, sondagens e publicidade, e qual o papel que desempenha o dinheiro neste triunvirato?”.

Sondagens, antolhos para o nosso descontentamento, chocas para conduzirem a nossa raiva ao abate, diluente do espírito crítico que se esvai.

sábado, 23 de maio de 2009

Óóóóóóó Mãe - Tanta gente


Vem ver
a

CDU
Já chegaram ao Marquês de Pombal e ainda há manifestantes em Entre-Campos.

São jovens e gente de trabalho.

Vem ver porque os jornais a rádio e a televisão vão tentar esconder esta avalanche.





VEM PARA A RUA LUTAR


Sábado 23


15 horas

Saldanha



sábado, 2 de maio de 2009

António Gramsci



22/1/1891 - 27/4/37


A propósito da crise:


(...) Quando toda a economia mundial se tornar capitalista e atingir um certo grau de desenvolvimento; isto é, quando a "fronteira móvel" do mundo económico capitalista houver alcançado as suas colunas de Hércules. As forças contra-operantes da lei tendencial e que se resumem na produção cada vez maior de mais-valia relativa têm limites, que são dados, por exemplo, do ponto de vista técnico, pela extensão e pela resistência elástica da matéria e, do ponto de vista social, pela quantidade suportável de desemprego em uma determinada sociedade. Em outras palavras, a contradição económica torna-se contradição política e é resolvida politicamente por uma subversão da práxis.

(Cadernos do Cárcere - Volume 1)