sexta-feira, 13 de agosto de 2010

O cumpridor Anobium - Miguel Serrano

Recordando Miguel Serrano e o nosso necessário e saudoso «o diário»

23.8.86
O cumpridor Anobium

Miguel Serrano

O consumismo para onde somos empurrados não se refere apenas aos electrodomésticos, aos automóveis, mas também ao afastamento dos cidadãos dos fenómenos sociais e políticos.

A mim a política não me interessa para nada; a minha política é o trabalho; ó vocês pensam que não sei; eles são todos iguais… etc.

Quando ouvir isto, leitor, e certamente o tem ouvido, está em presença de um individuo que vota nos partidos de direita, com um emprego que julga não merecer e que receia perder se cair em desgraça aos olhos do patrão que deve ser omnipresente como o era nos salazarentos temposolhos e ouvidos em toda a parte; está em presença, repetimos, de fulano que vota contra ele próprio e que, assim procedendo, se pensa sem política, portanto acima dos outros, que assim queria o manholas de Santa Comba Dão se pensasse. Logo a sua dele política é o trabalho, o tachinho a que chama ternamente sopinha que devia haver e não havia em toda a casa portuguesa com certeza, pão e vinho sobre a mesa.

Claro que quando tal afirma ele está a fazer política, a mais baixa e porca política, ou quer pura e simplesmente dizer que nasceu com alma de escravo rejubilante, que entrega ao patrão o direito de despedir quando muito bem lhe aprouver e que honrado fica, sempre que o patrão der por ele, cumprimentando-o com um simples gesto de cabeça. Se um dia lhe apertar a mão é caso para a não lavar jamais.

De resto, é esta atitude que o Governo pretende fomentar, como acontecia nos outros tempos. E operário que refilasse tinha a PIDE à perna porque assim o solicitavam os patrões. Não havia fábrica que não tivesse os seus «informadores». E era isto o não ter política. É isto ainda o não ter política ou não ter o resto… O não ter política é o eu estou bem, os outros que se lixem, tenham juízo façam como eu: sejam sabujos. O não ter política é também o não ser solidário com companheiros, ser egoísta, ter a política do patrão, aquela que ele quer que tenha porque assim parece bem, o escalão social onde comunga é outro, mais distinto, mais fino, mais vermute. Claro que há nisto muito de ignorância, comomesmo nos bem intencionados, naqueles que dizem eu não percebo nada dessas coisas – e riem.

Para que esta mentalidade se mantenha e se possível aumente tudo está montado: as notícias são tendenciosas ou filtradas, o acesso ao ensino é cada vez mais difícil, o livro é proibitivo, o desemprego é maior, as dificuldades aumentam – tudo isto para que o fosso se torne intransponível: de um lado, os cérebros privilegiados, os que têm a decisão, o poder, os senhores; do outro, os que lutam e trabalham para comer, apenas para comer.

Intimidar ou corromper foi (é) o meio de exercer autoridade, uns pelo excesso de importância individual, outros pelo despeito de vaidades não satisfeitas.

«A minha política é o trabalho»: são palavras-produto inventadas pelo grande capital, palavras que passaram a ser uma existência de tempo, de um tempo/hoje de reciclagem de desperdícios.

O consumismo para onde somos encaminhados não se refere apenas aos electrodomésticos, aos automóveis, mas também ao afastamento dos cidadãos dos fenómenos sociais e políticos.

Dizer: eu não sou político, é o mesmo que afirmar: eu não me importo de estar desempregado, de ter ordenados em atraso, que os meus filhos não tenham que comer nem direito à saúde e à educação; eu desisto da minha condição de homem e de cidadão, entrego a minha dignidade e liberdade ao querer dos outros.

Eu não sou político é muitas vezes ignorância, o medo e o desprestígio infundidos pela palavra político nos tempos salazarentos, é também muitas vezes carreirismo, porreirismo perante a entidade empregadora, o sentido dado à palavra, e é também uma mentalidade criada: de facto estar alheio ao destino da pessoa humana, aos problemas da paz e da segurança.

Eu não sou político e não tenho direito a nada, apenas me governo muito bem com os favores do patrão todo-poderoso, ou com a minha crença num poder superior. E assim tenho o céu garantido.

Os outrosOra os outros, cada qual amanha-se como pode e muito bem entende.

Eu não sou político. Claro que quando tal se afirma está a defender-se um facto político, uma atitude de direita regra geral, a tentar não ofender ou irritar o patrão. Está a afirmar que é um indivíduo «bem comportado», acima dessas coisas. É esta a maneira que encontrou de ser político.

A sensibilidade para o facto político e sua responsabilidadeporque todos somos responsáveis – é uma apreciável força política que pode exercer e exerce influência no desenvolvimento dos acontecimentos.

Não ser político, ou assim se julgar ou dizer, é não existir, não ser, não estar, não participar. Os velhos conceitos salazarentos, que permanecem e continuam a ser estimulados, são bem um exemplo da destruição de um povo como elemento histórico.

Não fosse político Afonso Henriques e de Portugal nunca teria sido rei, nem dinastias teríamos decorado na instrução primária.

Não digo que o Anobium de que nos fala José Saramago nesse muito belo conto «cadeira», -- o «Anobium vencedor», o último elo que faltava para a destruição da cadeira do ditador, não digo que fosse, na sua infinita sabedoria de muitos séculos – a sabedoria de ir desfazendo a madeira mais ou menos dura --, não digo que fosse político. Mas ele e todos os seus antecessores cumpriram, neste caso específico, a sua função. Não digo que Viva o Anobium, mas sei que nesse momento exacto em que a cadeira tombou o Anobium esteve connosco. Ora, se o muito minúsculo Anobium pode cumprir a sua missão, porque motivo hão-de ficar cidadãos conscientes alheios à luta dos povos pela paz, pela fraternidade, pela habitação, pelo emprego, pela saúde, pelo bem-estar dos filhos, pelo futuro? Se de ciência sabida se sabe, embora não tivesse sido divulgado que, como nos informa o referido conto, as botas do ditador eram bifurcadas… as damas de pé-de-cabra ainda por andam. E insinuam-se…

A linguagem encontra-se conforme o vivido de cada um e muitas vezes com a certeza que esse vivido coincide com as conveniências do senhor-todo-poderoso-patrão.