Recordando Miguel Serrano e o nossonecessário e saudoso «o diário»
23.8.86
O cumpridor Anobium
Miguel Serrano
O consumismoparaonde somos empurrados não se refere apenas aos electrodomésticos, aos automóveis, mastambém ao afastamento dos cidadãos dos fenómenos sociais e políticos.
A mim a políticanãome interessa paranada; a minhapolítica é o trabalho; ó vocês pensam quenão sei; elessãotodosiguais… etc.
Quandoouviristo, leitor, e certamentejá o tem ouvido, está empresença de um individuo quevotanospartidos de direita, comumempregoque julga nãomerecer e quereceiaperder se cairemdesgraça aos olhos do patrãoque deve ser omnipresente como o eranos salazarentos tempos – olhos e ouvidosemtoda a parte; está empresença, repetimos, de fulanoquevotacontraelepróprio e que, assim procedendo, se pensasempolítica, portantoacima dos outros, queassim queria o manholas de Santa Comba Dão se pensasse. Logo a sua dele política é o trabalho, o tachinho a quechamaternamente sopinha que devia haver e não havia emtoda a casa portuguesa comcerteza, pão e vinhosobre a mesa.
Claroquequandotal afirma ele está já a fazerpolítica, a maisbaixa e porcapolítica, ouquerpura e simplesmentedizerque nasceu comalma de escravo rejubilante, queentrega ao patrão o direito de despedirquandomuitobemlhe aprouver e que honrado fica, sempreque o patrão der porele, cumprimentando-o comumsimplesgesto de cabeça. Se umdialheapertar a mão é casopara a nãolavarjamais.
De resto, é esta atitudeque o Governo pretende fomentar, como acontecia nosoutrostempos. E operárioque refilasse tinha a PIDE à pernaporqueassim o solicitavam os patrões. Não havia fábricaquenão tivesse os seus «informadores». E eraisto o nãoterpolítica. É istoainda o nãoterpolíticaounãoter o resto… O nãoterpolítica é o eu estou bem, os outrosque se lixem, tenham juízo façam comoeu: sejam sabujos. O nãoterpolítica é também o nãosersolidáriocomcompanheiros, ser egoísta, ter a política do patrão, aquela queelequerque tenha porqueassim parece bem, o escalãosocialonde comunga é outro, maisdistinto, maisfino, maisvermute. Claroque há nisto muito de ignorância, como há mesmonosbem intencionados, naqueles que dizem eunão percebo nada dessas coisas – e riem.
Paraque esta mentalidade se mantenha e se possível aumente tudo está montado: as notíciassão tendenciosas ou filtradas, o acesso ao ensino é cadavezmaisdifícil, o livro é proibitivo, o desemprego é maior, as dificuldades aumentam – tudoistoparaque o fosso se torne intransponível: de umlado, os cérebros privilegiados, os que têm a decisão, o poder, os senhores; do outro, os que lutam e trabalham paracomer, apenaspara comer.
Intimidaroucorromper foi (é) o meio de exercerautoridade, uns peloexcesso de importânciaindividual, outrospelodespeito de vaidadesnão satisfeitas.
«A minhapolítica é o trabalho»: são palavras-produto inventadas pelograndecapital, palavrasque passaram a ser uma existência de tempo, de umtempo/hoje de reciclagem de desperdícios.
O consumismoparaonde somos encaminhados não se refere apenas aos electrodomésticos, aos automóveis, mastambém ao afastamento dos cidadãos dos fenómenos sociais e políticos.
Dizer: eunão sou político, é o mesmoqueafirmar: eunãome importo de estar desempregado, de terordenadosematraso, que os meusfilhosnão tenham quecomernemdireito à saúde e à educação; eu desisto da minhacondição de homem e de cidadão, entrego a minhadignidade e liberdade ao querer dos outros.
Eunão sou político é muitas vezesignorância, o medo e o desprestígio infundidos pelapalavrapolíticonostempos salazarentos, é também muitas vezescarreirismo, porreirismo perante a entidade empregadora, o sentidodado à palavra, e é também uma mentalidadecriada: de facto estaralheio ao destino da pessoahumana, aos problemas da paz e da segurança.
Eunão sou político e não tenho direito a nada, apenasmegovernomuitobemcom os favores do patrãotodo-poderoso, oucom a minhacrença num podersuperior. E assim tenho o céu garantido.
Os outros… Ora os outros, cadaqual amanha-se como pode e muitobem entende.
Eunão sou político. Claroquequandotal se afirma está a defender-se um facto político, uma atitude de direitaregrageral, a tentarnãoofenderouirritar o patrão. Está a afirmarque é umindivíduo «bem comportado», acima dessas coisas. É esta a maneiraque encontrou de serpolítico.
A sensibilidadepara o facto político e suaresponsabilidade – porquetodos somos responsáveis – é já uma apreciávelforçapolíticaque pode exercer e exerce influência no desenvolvimento dos acontecimentos.
Nãoserpolítico, ouassim se julgaroudizer, é nãoexistir, nãoser, nãoestar, nãoparticipar. Os velhosconceitos salazarentos, que permanecem e continuam a ser estimulados, sãobemumexemplo da destruição de umpovocomoelementohistórico.
Não fosse político Afonso Henriques e de Portugal nunca teria sido rei, nemdinastias teríamos decorado na instruçãoprimária.
Não digo que o Anobium de quenosfala José Saramago nesse muitobeloconto «cadeira», -- o «Anobium vencedor», o últimoeloque faltava para a destruição da cadeira do ditador, não digo que fosse, na suainfinitasabedoria de muitosséculos – a sabedoria de ir desfazendo a madeiramaisoumenosdura --, não digo que fosse político. Masele e todos os seusantecessores cumpriram, neste casoespecífico, a suafunção. Não digo queViva o Anobium, mas sei que nesse momento exacto emque a cadeira tombou o Anobium esteve connosco. Ora, se o muitominúsculo Anobium pode cumprir a suamissão, porquemotivo hão-de ficarcidadãosconscientesalheios à luta dos povospelapaz, pelafraternidade, pelahabitação, peloemprego, pelasaúde, pelobem-estar dos filhos, pelofuturo? Se de ciênciasabida se sabe, emboranão tivesse sido divulgado que, comonos informa o referido conto, as botas do ditador eram bifurcadas… as damas de pé-de-cabraaindaporaí andam. E insinuam-se…
A linguagem encontra-se conforme o vivido de cadaum e muitas vezescom a certezaqueessevivido coincide com as conveniências do senhor-todo-poderoso-patrão.
1 comentário:
Porque será que me lembrei de Brecht...
Bom fim-de-semana.
Abraços.
Enviar um comentário