sábado, 28 de dezembro de 2013

O PAÍS RELATIVO - Alexandre O’Neill

O PAÍS RELATIVO

País por conhecer, por escrever, por ler...
             *
País purista a prosear bonito,
a versejar tão chique e tão pudico,
enquanto a língua portuguesa se vai rindo,
galhofeira, comigo.
             *
País que me pede livros andejantes
com o dedo, hirto, a correr as estantes.
             *
País engravatado todo o ano
e a assoar-se na gravata por engano.
             *
País onde qualquer palerma diz,
a afastar do busílis o nariz:
-Não, não é para mim este país!
mas quem é que bàquestica sem lavar
o sovaco que lhe dá o ar?
             *
Entrecheiram-se, hostis, os mil narizes
que há neste país.
             *
País do cibinho mastigado
devagarinho.
             *
País amador do rapapé,
do meter butes e do parlapié,
que se espaneja, cobertas as miúdas,
e as desleixa quando ventrudas.
             *
O incrível país da minha tia,
trémulo de bondade e de aletria.
             *
Moroso país da surda cólera,
de repente que se quer feliz.
             *
sabemos, país, que és um homenzinho...
             *
País tunante que diz que passa a vida
a meter entre parêntesis a cedilha.
             *
A damisela passeia
no país da alcateia,
tão exterior a si mesma
que não é senão a fome
com que este país a come.
             *
País do eufemismo, à morte dia a dia
pergunta mesureiro: - Como vai a vida?
             *
País dos gigantones que passeiam
a importância e o papelão,
inaugurando esguichos no engonço
do gesto e do chavão.
 
E aindaquem os ouça, quem os leia,
lhes agradeça a fontanária ideia!

Corre boleada, pelo azul,
a frota de nuvens do país.
             *
País desconfiado a reolhar para cima
dum ombro que, com razão duvida.
             *
Este país que viaja a meu lado,
vai transido mas transistorizado.
             *
Nhurro país que nunca se desdiz.
             *
Cedilhado o , país, não te revejas
na cedilha, que a palavra urge.
             *
Este país, enquanto se alivia,
manda-nos à mãe, à irmã, à tia,
a nós e à tirania,
sem perder tempo nem caligrafia.
             *
Nesta mosquitomaquia
que é a vida,
ó país,
que parece comprida!
             *
A Santa Paciência, país, a tua padroeira,
perde a paciência à nossa cabeceira.
             *
País pobrete e nada alegrete,
baú fechado com um aloquete,
que entre dois sudários não contém senão
a triste maçã do coração.
             *
Que Santa Sulipanta nos conforte
na má vida, país, na boa morte!
             *
País das troncas e delongas ao telefone
com mil cavilhas para cada nome.
             *
De ramona, país, que de viagens
tens, tão contrafeito...
             *
Embezerra, país, que bem mereces,
prepara, no mutismo, teus efes e teus erres.
             *
Desaninhada a perdiz,
não a discutas, país!
Espirra-lhe a morte pra cima
com os dois canos do nariz!
             *
Um país maluco de andorinhas
tesourando as nossas cabecinhas
de enfermiços meninos, roda-viva
em que entrássemos de corpo e alegria!
             *
Estrela trepa trepa pelo vento fagueiro
e ao país que te espreita, se o vês inteiro.
 
Hexágono de papel que o meu pai pôs no ar,
o passo a meu filho, cansado de o olhar...
             *
No sumapau seboso da terceira,
contigo viajei, ó país por lavar,
aturei-te o arroto, o pivete, a coceira,
a conversa pancrácia e o jeito alvar.
 
Senhor do meu nariz, franzi-te a sobrancelha;
entornado de sono, resvalaste para mim.
Mas também me ofereceste a cordial botelha,
empinada que foi, tal e qual clarim!
 
Alexandre O’Neill
(Feira Cabisbaixa – 1965)
 


segunda-feira, 23 de dezembro de 2013

"Esta é a história do meu Menino Jesus" - Alberto Caeiro



O Guardador de Rebanhos
In Poemas de Alberto Caeiro
.(extracto)

«E depois, cansado de dizer mal de Deus, o menino Jesus adormece nos meus braços...»

Num meio-dia de fim de Primavera
Tive um sonho como uma fotografia.
Vi Jesus Cristo descer à terra.
Veio pela encosta de um monte
Tornado outra vez menino,
A correr e a rolar-se pela erva
E a arrancar flores para as deitar fora
E a rir de modo a ouvir-se de longe.

Tinha fugido do céu.
Era nosso demais para fingir
De segunda pessoa da Trindade.
No céu era tudo falso, tudo em desacordo
Com flores e árvores e pedras.
No céu tinha que estar sempre sério
E de vez em quando de se tornar outra vez homem
E subir para a cruz, e estar sempre a morrer
Com uma coroa toda à roda de espinhos
E os pés espetados por um prego com cabeça,
E até com um trapo à roda da cintura
Como os pretos nas ilustrações.
Nem sequer o deixavam ter pai e mãe
Como as outras crianças.
O seu pai era duas pessoas
Um velho chamado José, que era carpinteiro,
E que não era pai dele;
E o outro pai era uma pomba estúpida,
A única pomba feia do mundo
Porque não era do mundo nem era pomba.
E a sua mãe não tinha amado antes de o ter.

Não era mulher: era uma mala
Em que ele tinha vindo do céu.
E queriam que ele, que nascera da mãe,
E nunca tivera pai para amar com respeito,
Pregasse a bondade e a justiça!

Um dia que Deus estava a dormir
E o Espírito Santo andava a voar,
Ele foi à caixa dos milagres e roubou três.
Com o primeiro fez que ninguém soubesse que ele tinha fugido.
Com o segundo criou-se eternamente humano e menino.
Com o terceiro criou um Cristo eternamente na cruz
E deixou-o pregado na cruz que há no céu
E serve de modelo às outras.
Depois fugiu para o Sol
E desceu pelo primeiro raio que apanhou.
Hoje vive na minha aldeia comigo.
É uma criança bonita de riso e natural.
Limpa o nariz ao braço direito,
Chapinha nas poças de água,
Colhe as flores e gosta delas e esquece-as.
Atira pedras aos burros,
Rouba a fruta dos pomares
E foge a chorar e a gritar dos cães.
E, porque sabe que elas não gostam
E que toda a gente acha graça,
Corre atrás das raparigas
Que vão em ranchos pelas estradas
Com as bilhas às cabeças
E levanta-lhes as saias.

A mim ensinou-me tudo.
Ensinou-me a olhar para as coisas.
Aponta-me todas as coisas que há nas flores.
Mostra-me como as pedras são engraçadas
Quando a gente as tem na mão
E olha devagar para elas.

Diz-me muito mal de Deus.
Diz que ele é um velho estúpido e doente,
Sempre a escarrar no chão
E a dizer indecências.
A Virgem Maria leva as tardes da eternidade a fazer meia.
E o Espírito Santo coça-se com o bico
E empoleira-se nas cadeiras e suja-as.
Tudo no céu é estúpido como a Igreja Católica.
Diz-me que Deus não percebe nada
Das coisas que criou —
«Se é que ele as criou, do que duvido.» —
«Ele diz, por exemplo, que os seres cantam a sua glória,
Mas os seres não cantam nada.
Se cantassem seriam cantores.
Os seres existem e mais nada,
E por isso se chamam seres
E depois, cansado de dizer mal de Deus,
O Menino Jesus adormece nos meus braços
E eu levo-o ao colo para casa
……
Ele mora comigo na minha casa a meio do outeiro.
Ele é a Eterna Criança, o deus que faltava.
Ele é o humano que é natural,
Ele é o divino que sorri e que brinca.
E por isso é que eu sei com toda a certeza
Que ele é o Menino Jesus verdadeiro.

E a criança tão humana que é divina
É esta minha quotidiana vida de poeta,
E é porque ele anda sempre comigo que eu sou poeta sempre.
E que o meu mínimo olhar
Me enche de sensação,
E o mais pequeno som, seja do que for,
Parece falar comigo.

A Criança Nova que habita onde vivo
Dá-me uma mão a mim
E a outra a tudo que existe
E assim vamos os três pelo caminho que houver,
Saltando e cantando e rindo
E gozando o nosso segredo comum
Que é o de saber por toda a parte
Que nãomistério no mundo
E que tudo vale a pena.

A Criança Eterna acompanha-me sempre.
A direcção do meu olhar é o seu dedo apontando.
O meu ouvido atento alegremente a todos os sons
São as cócegas que ele me faz, brincando, nas orelhas.

Damo-nos tão bem um com o outro
Na companhia de tudo
Que nunca pensamos um no outro,
Mas vivemos juntos e dois
Com um acordo íntimo
Como a mão direita e a esquerda.

Ao anoitecer brincamos as cinco pedrinhas
No degrau da porta de casa,
Graves como convém a um deus e a um poeta,
E como se cada pedra
Fosse todo um universo
E fosse por isso um grande perigo para ela
Deixá-la cair no chão.

Depois eu conto-lhe histórias das coisas dos homens
E ele sorri, porque tudo é incrível.
Ri dos reis e dos que não são reis,
E tem pena de ouvir falar das guerras,
E dos comércios, e dos navios
Que ficam fumo no ar dos altos mares.
Porque ele sabe que tudo isso falta àquela verdade
Que uma flor tem ao florescer
E que anda com a luz do Sol
A variar os montes e os vales
E a fazer doer aos olhos os muros caiados.

Depois ele adormece e eu deito-o.
Levo-o ao colo para dentro de casa
E deito-o, despindo-o lentamente
E como seguindo um ritual muito limpo
E todo materno até ele estar nu.

Ele dorme dentro da minha alma
E às vezes acorda de noite
E brinca com os meus sonhos.
Vira uns de pernas para o ar,
Põe uns em cima dos outros
E bate as palmas sozinho
Sorrindo para o meu sono.
……
Quando eu morrer, filhinho,
Seja eu a criança, o mais pequeno.
Pega-me tu ao colo
E leva-me para dentro da tua casa.
Despe o meu ser cansado e humano
E deita-me na tua cama.
E conta-me histórias, caso eu acorde,
Para eu tornar a adormecer.
E dá-me sonhos teus para eu brincar
Até que nasça qualquer dia
Que tu sabes qual é. 
……
Esta é a história do meu Menino Jesus.
Por que razão que se perceba
Não há-de ser ela mais verdadeira
Que tudo quanto os filósofos pensam
E tudo quanto as religiões ensinam?
s.d.
“O Guardador de Rebanhos”. In Poemas de Alberto Caeiro. Fernando Pessoa. (Nota explicativa e notas de João Gaspar Simões e Luiz de Montalvor.) Lisboa: Ática, 1946 (10ª ed. 1993).
 - 32.
“O Guardador de Rebanhos”. 1ª publ. in Presença, nº 30. Coimbra: Jan.-Fev. 1931.