terça-feira, 23 de fevereiro de 2016

Letreiro - Miguel Torga



Caricatura de Vasco Gargalo
   
Letreiro


Porque não sei mentir,
Não vos engano:
Nasci subversivo.
A começar por mim – meu principal motivo
De insatisfação -,
Diante de qualquer adoração,
Ajuízo.
Não me sei conformar.
E saio, antes de entrar,
De cada paraíso.



Miguel Torga

domingo, 21 de fevereiro de 2016

FOI PARA ISSO QUE OS POETAS FORAM FEITOS - António manuel pires cabral

FOI PARA ISSO QUE OS POETAS FORAM FEITOS

semear tempestades

e assegurar que cresçam
foi para isso que os poetas foram feitos

esgrimir com a mais idónea

das espadas: a coragem
foi para isso que os poetas foram feitos

namorar a perfeição

e às vezes alcançá-la
foi para isso que os poetas foram feitos
antónio manuel pires cabral

quinta-feira, 18 de fevereiro de 2016

Elegia das Águas Negras para Che Guevara - Eugénio de Andrade


Elegia das Águas Negras para Che Guevara

Atado ao silêncio, o coração ainda
pesado de amor, jazes de perfil,
escutando, por assim dizer, as águas
negras da nossa aflição.

Pálidas vozes em prado procuram
O potro mais livre, a palmeira
mais alta sobre o lago, o barco talvez
Ou o mel entornado da nossa alegria.

Olhos apertados pelo medo
aguardam na noite o sol do meio-dia,
a face viva do sol onde cresces,
onde te confundes com os ramos
de sangue do verão ou o rumor
dos pés brancos da chuva nas areias.

A palavra, como tu dizias, chega
húmida dos bosques: temos que semeá-la;
chega húmida da terra: temos que defendê-la;
chega com as andorinhas
que a beberam sílaba a sílaba na tua boca.

Cada palavra tua é um homem de pé;
cada palavra tua
faz do orvalho uma faca,
faz do ódio um vinho inocente
para bebermos contigo
no coração em redor do fogo.

Eugénio de Andrade
em Poemas a Guevara (selecção e tradução de Egito Gonçalves
colecção Os Olhos e a Memória - Editora Limiar - 1975)



quarta-feira, 17 de fevereiro de 2016

Eu também escrevo contos - juan gelman



Eu também escrevo contos

Era uma vez um poeta português
tinha quatro poetas lá dentro e vivia muito preocupado
trabalhava na administração pública e onde
é que se viu um funcionário público de portugal ganhar para alimentar quatro bocas

todas as noites fazia a chamada aos seus poetas incluindo-se a si mesmo
um estendia a mão pela janela e caíam-lhe astros
outro escrevia cartas ao sul
que estão a fazer do sul
dizia ele

do meu uruguai
dizia
o outro
transformou-se num barco que amou os marinheiros
isto é belo porque nem todos os barcos fazem isso
há barcos que preferem espreitar pela vigia

há barcos que se afundam
Deus caminha aflito com um fenómeno assim
é que nem todos os barcos se parecem com os poetas do português
saíam do mar e secavam os ossinhos ao sol

cantando a canção dos teus seios
amada
cantavam que os teus seios chegaram uma tarde com um cortejo de horizontes
assim cantavam os poetas do português para dizer que te amo
antes de se deixarem
estenderem a mão para o céu
escreverem cartas ao uruguai

que vão chegar amanhã
amanhã vão chegar as cartas do português e varrerão a tristeza
amanhã vai chegar o barco do português ao porto de montevideu
sempre soube que entraria nesse porto e ficaria mais belo

como os quatro poetas do português
quando juntos se preocupavam com o homem da tabacaria da frente
o animal de sonhos do homem da tabacaria da frente
galopando como don josé gervasio de artigas através da fome no mundo

o português tinha quatro poetas a olhar para o sul
para o norte
para o muro
 para o céu
a todos dava de comer com o salário da alma
ganhava o ordenado na administração do país público
e também a olhar para o mar que vai de lisboa ao uruguai

estou sempre a esquecer-me de coisas
uma vez esqueci-me de um olho na metade de uma mulher
de outra esqueci-me de uma mulher na metade do português
esqueci-me do nome do poeta português

do que não me esqueço é do seu barco rumo ao sul
da sua mãozinha cheia de astros
investindo contra a fúria do mundo
com o homem da frente na mão

juan gelman
no avesso do mundo
trad. colectiva da casa de mateus
revista por ana luísa Amaral
quetzal 1998

Yo también escribo cuentos

Había una vez un poeta portugués
tenía cuatro poetas adentro y vivía muy preocupado
trabajaba en la administración pública y dónde se vio que un empleado público de portugal
gane para alimentar cuatro bocas

Cada noche pasaba lista a sus poetas incluyéndose a sí mismo
uno estiraba la mano por la ventana y le caían astros allí
otro escribía cartas al sur qué están haciendo del sur
decía

De mi uruguay
decía
el otro se convirtió en un barco que amó a los marineros
esto es bello porque no todos los barcos hacen así
hay barcos que prefieren mirar por el ojo de buey

Hay barcos que se hunden
Dios camina afligido por el fenómeno ése
es que no todos los barcos se parecen a los poetas del portugués
salían del mar y se secaban los huesitos al sol


Cantando la canción de tus pechos

amada
cantaban que tus pechos llegaron una tarde con
una escolta de horizontes
eso cantaban los poetas del portugués para decir que te amo
antes de separarse
tender la mano al cielo
escribir cartas al uruguay

Que mañana van a llegar
mañana van a llegar las cartas del portugués y barrerán la tristeza
mañana va a llegar el barco del portugués al puerto de montevideo
siempre supo que entraba en ese puerto y se volvía más hermoso

Como los cuatro poetas del portugués cuando se preocupaban
todos juntos por el hombre de la tabaquería de enfrente
el animal de sueños del hombre de la tabaquería de enfrente
galopando con como josé gervasio de artigas por el hambre mundial

El portugués tenía cuatro poetas mirando al sur
al norte
al muro
al cielo les daba a todos de comer con el sueldo del alma
él se ganaba el sueldo en la administración del país público
y también mirando el mar que va de lisboa al uruguay
Yo siempre estoy olvidando cosas
una vez me olvidé un ojo en la mitad de una mujer
otra vez me olvidé una mujer en la mitad de portugués
me olvidé el nombre del poeta portugués

De lo que no me olvido es de su barco navegando hacia el sur
de su manita llena de astros
golpeando contra la furia del mundo
con el hombre de enfrente en la mano.

Juan Gelman