quarta-feira, 6 de julho de 2016

A Hora das Gaivotas - João Monge



Poema (magistralmente) lido pela actriz Maria João Luís na recriação da fuga de 3 de Janeiro de 1960, realizada junto ao Forte de Peniche.

A Hora das Gaivotas

Em todas as casas há um coração suspenso
e uma janela sobre o mar
As crianças recolheram a casa
e o mar, sempre o mar, estende as longas crinas
de cavalo azul nas paredes de pedra
É noite
É a espada líquida da noite
Chicharro com pão dormido, camarada
pão dormido
As gaivotas ensaiam o voo tresloucado
dos papagaios de papel
Parecem ter medo de poisar,
de dar descanso ao seu coração suspenso:
O medo de calar por dentro
– … e rabanadas com três dias
Tudo nos serve para medir o tempo
Eles não sonham
É a mais líquida de todas as noites
Nada se conforma no seu próprio destino:
As casas,
O mar,
As gaivotas,
Os homens…
Tudo parece convergir para o ninho inevitável
onde todas as coisas regressam à sua razão de ser:
A Liberdade
(A Patética de Tchaikovsky escorre de um velho gira-discos para as paredes do
refeitório)
É tão louco este mundo, camarada
1893, 1893. O ano da Patética, o ano do Grito de Edvard Munch
O maior grito da humanidade
O inexplicável grito de todos nós
Em todas as casas há um coração suspenso
e uma janela sobre o mar
As crianças recolheram a casa
e, protegidas pelos pais,
adivinham por detrás das cortinas
um sinal que dê sentido a tudo
Ninguém sabe o que espera
mas toda a gente espera em silêncio
É como se a terra soubesse
que há dias em que o mundo tem de ser redondo
3 de Janeiro de 1960
Às sete em ponto da tarde
Adágio–Allegro non troppo
Nada me passa na garganta, só um grito mudo…
A estrada ainda está deserta, nem uma luz…
Mas ele há-de vir!
Somos 10, estamos contados
Contemo-nos de novo:
Álvaro,
Jaime,
Joaquim,
Carlos,
Francisco,
José,
Guilherme,
Pedro,
Rogério,
Francisco.
E eu, e tu, e quem atrás de nós vier
E todos os que hão-de nascer
Com uma côdea no céu-da-boca
É por isso que o mar espalha a sua toalha bordada
na praia, aos nossos pés
para, da sua eterna sabedoria, nos prendar com a nossa igualdade
Allegro com grazia
Pai, olha aquele carro, olha aquele carro
Apaga a luz, apaga a luz…
Vem com a mala aberta, devagarinho, devagarinho…
Vem do lado das docas…
Pai, repara, as gaivotas pousaram todas…
– … e parou em frente ao forte
É a hora das gaivotas
É a hora das gaivotas
O homem está a sair do carro, pai…
Sim. Vai fechar a mala, certamente…
Olha, as gaivotas, com o som da mala a fechar, levantaram voo novamente
São misteriosas as campainhas do destino
Allegro molto vivace
Em todas as casas há um coração suspenso
pelo medo e pela saudade
e uma boca amarrada às paredes cegas
Francisco, rasga esses lençóis
que nos fizeram para sudários.
Todas as palavras são medidas
como as sardinhas
e quase nunca é domingo
Vá, tu sabes dar os nós de pescador
Une as tiras e dá-lhes um nó no meio
para que as mãos encontrem mais firmeza
A terrina ocupa o centro da mesa
as crianças são servidas primeiro
Apenas o tilintar das colheres
abre feridas no silêncio das casas
E as côdeas de pão dormido
quando estalam no céu-da-boca
Somos 10, estamos contados
A corda tem de servir 10 vezes, camarada
O jantar é em silêncio
Mas quando o cavalo azul galopa pelas muralhas
ouve-se a sua pulsação
a estalar o coração das gentes
Pai, posso ir à janela?
O carro já se foi embora. Não há nada para ver. Acaba a sopa
Há, pai! As gaivotas não se calam
E as ondas batem sem conta certa
Deixa-me apagar a luz…
Pai, passaram dois carros grandes mesmo agora. Um seguiu em frente e o
outro está parado à porta da vizinha com as luzes apagadas
Esperam alguém. É gente de bem
Finale — Adagio lamentoso
Não olhes para baixo, camarada
E o mar, sempre o mar, estende as longas crinas
de cavalo azul nas paredes de pedra
Pai, há uma corda a baloiçar na parede do forte…
Em todas as casas há um coração suspenso
e um lugar vazio à mesa
Isso, conta os nós… tu sabes a conta certa
Não olhes para baixo
Pai, o homem pôs o carro a trabalhar…
Os gritos das gaivotas cobrem com um véu de tule
os ruídos dos ossos contra as pedras
É a natureza do lado certo
Pai, outro homem… e outro… e outro…
É o medo contaminado pela esperança
e a espada líquida da noite virada de feição
Pai, ajuda-me… não entendo, não entendo…
É a hora das gaivotas, meu amor!

2 comentários:

Olinda disse...

É o caminho das aves!!!Tão lindo!Imagino dito,,,Abraço

Maria disse...

Um arrepio cada vez que leio este poema!