quarta-feira, 30 de agosto de 2017

Cantiga alegre de um tema trágico - JOAQUIM BENITE

Cantiga alegre
de um tema trágico


encontro um homem
no carro eléctrico
a decorar o
sistema métrico

vou contra o homem
digo-lhe vem
e o homem parte
no campo de ninguém

quem era este homem
ou quem foi ou quem
teria sido? igual
aos outros que também
não vem. porque
ninguém vem
quando alguém
chama

ninguém deseja
que o carro eléctrico
esteja para além
do sistema métrico

tudo medido
e condicionado
pode ser que um dia
se cante outro fado

por enquanto é
preciso ser
tão prudente quanto
se possa ser

neste carro eléctrico
a população
não se reúne nem
oferece a mão

Lisboa é
a cidade modelo.
quando alguém quer ser
mas querer não é ser

não pode chamar
pois não sabe a quem:
apenas pode voltar
a escrever bem



segunda-feira, 28 de agosto de 2017

Poema da Terra Adubada - António Gedeão

Poema da Terra Adubada

Por detrás das árvores não se escondem faunos, não.
Por detrás das árvores escondem-se os soldados
com granadas de mão.

As árvores são belas com os troncos dourados.
São boas e largas para esconder soldados.

Não é o vento que rumoreja nas folhas,
não é o vento, não.
São os corpos dos soldados rastejando no chão.

O brilho súbito não é do limbo das folhas verdes reluzentes.
É das lâminas das facas que os soldados apertam entre os dentes.

As rubras flores vermelhas não são papoilas, não.
É o sangue dos soldados que está vertido no chão.

Não são vespas, nem besoiros, nem pássaros a assobiar.
São os silvos das balas cortando a espessura do ar.

Depois os lavradores
rasgarão a terra com a lâmina aguda dos arados,
e a terra dará vinho e pão e flores
adubada com os corpos dos soldados.

António Gedeão
in 'Linhas de Força'


domingo, 27 de agosto de 2017

Poema XIV - Carlos Maria de Araújo

Poema XIV

Esta é a idade do Bode
E do Minotauro,
Do Abutre, da víbora
E dos Negreiros.

Das crianças marcadas a fogo
Pela fome
E dos homens-sem-medo
Chorando de pejo.

Dos amigos que abraçam
Escondendo punhais.
Dos carrascos que promovem
Funerais nacionais.
Da Cidade imensa
E do trigo queimado
Do analfabetismo extinto
Mas do jornal censurado.

Das baionetas urrando
E dos lábios cerrados!

Carlos Maria de Araújo

1921 - Nasce em Lisboa, em 9 de abril.
1949 - Sai de Portugal para tratar-se de problemas de saúde na Suíça, onde vive por algum tempo.
1952 - Versos, pequena coleção de textos publicada em Zurique.
1953 - Prepara o volume de poemas Degraus, que não chega a ser publicado. Após uma estadia na Inglaterra, transfere-se para São Paulo, onde vive do jornalismo de Imprensa e de Rádio.
1954 - Inicia a sua colaboração no O Estado de São Paulo, escrevendo sobre diversas manifestações artísticas, além de assinar, por longos anos, uma crônica satírica, "Aos Domingos". Também colabora dispersamente em vários jornais brasileiros e publicações britânicas, norte-americanas e francesas.
1960 - Ofício de Trevas, poemas com ilustrações de Clóvis Graciano.
1962 - Nove Poemas, com capa e desenhos de Acácio Assunção. Falece, na queda do avião que o levaria à Inglaterra, nas águas da Baía da Guanabara, no Rio de Janeiro, em 20 de agosto.

Carlos Maria de Araújo segundo Jorge de Sena
   [...]
   A sua obra muito breve é por certo das mais notáveis da poesia portuguesa que o desconhece ainda [...]; e pode considerar-se representada pelos dois livros que publicou pouco antes de morrer. Poesia extremamente despojada e densa, de uma intensa severidade formal e de vigorosa emoção contida numa expressão lapidar, é bem a de um oficiante das trevas, dessas trevas que tão terrivelmente cobrem a vida e o mundo. Nos seus ritmos curtos e sincopados, sob os quais todavia flui oculta uma simplicidade quase sentimental, esta poesia significa, como poucas das recentes, uma fulgurante definição do exílio português, no que ele tem de amargo e de frustrado, como no que, nele, resiste a tudo e mesmo ao medo que o verso tenha de sê-lo na boca do poeta, qual este disse num dos seus mais belos poemas. JORGE DE SENA

sábado, 26 de agosto de 2017

A Alma Nova - Guilherme de Azevedo

Guilherme de Azevedo retratado por Rafael Bordalo Pinheiro


A Alma Nova XVII

Ó máquinas febris! eu sinto a cada passo,
nos silvos que soltais, aquele canto imenso,
que a nova geração nos lábios traz suspenso
como a estância viril duma epopeia d’aço!

Enquanto o velho mundo arfando de cansaço
prostrado cai na luta; em fumo negro e denso
levanta-se a espiral desse moderno incenso
que ofusca os deuses vãos, anuviando o espaço!

Vós sois as criações fulgentes, fabulosas,
que, vibrantes, cruéis, de lavas sequiosas,
mordeis o pedestal da velha Majestade!

E as grandes combustões que sempre vos consomem    
começam, num cadinho, a refundir o homem
fazendo ressurgir mais larga a Humanidade.

(1839-1882)
(Alma Nova, 1874)