quinta-feira, 30 de novembro de 2017

Desastre - Cesário Verde


“O Almoço do Trolha de Júlio Pomar”
Desastre



Ele ia numa maca, em ânsias, contrafeito,
Soltando fundos ais e trêmulos queixumes;
Caíra dum andaime e dera com o peito,
Pesada e secamente, em cima duns tapumes.

A brisa que balouça as árvores das praças,
Como uma mãe erguia ao leito os cortinados,
E dentro eu divisei o ungido das desgraças,
Trazendo em sangue negro os membros ensopados.

Um preto, que sustinha o peso dum varal,
Chorava ao murmurar-lhe: "Homem não desfaleça!"
E um lenço esfarrapado em volta da cabeça,
Talvez lhe aumentasse a febre cerebral.

Flanavam pelo Aterro os dândis e as cocottes,
Corriam char-à-Bancs cheios de passageiros
E ouviam-se canções e estalos de chicotes,
Junto à maré, no Tejo, e as pragas dos cocheiros.

Viam-se os quarteirões da Baixa: um bom poeta,
A rir e a conversar numa cervejaria,
Gritava para alguns: «Que cena tão faceta!
Reparem! Que episódio!» Ele já não gemia.


Findara honrosamente. As lutas, afinal,
Deixavam repousar essa criança escrava,
E a gente da província, atônita, exclamava:
"Que providências! Deus! Lá vai para o hospital!"

Por onde o morto passa há grupos, murmurinhos;
Mornas essências vêm duma perfumaria,
E cheira a peixe frito um armazém de vinhos,
Numa travessa escura em que não entra o dia!

Um fidalgote brada e duas prostitutas:
«Que espantos! Um rapaz servente de pedreiro!»
Bisonhos, devagar, passeiam uns recrutas
E conta-se o que foi na loja dum barbeiro.

Era enjeitado, o pobre. E, para não morrer,
De bagas de suor tinha uma vida cheia;
Levava a um quarto andar cochos de cal e areia,
Não conhecera os pais, nem aprendera a ler.

Depois da sesta, um pouco estonteado e fraco,
Sentira a exaltação da tarde abafadiça;
Quebravam-lhe o corpinho o fumo do tabaco
E o fato remendado e sujo de caliça.

Gastara o seu salário – oito vinténs ou menos –
Ao longe o mar, que abismo! E o sol, que labareda!
«Os vultos, lá em baixo, oh! Como são pequenos!»
E estremeceu, rolou nas atrações da queda.

O mísero a doença, as privações cruéis
Soubera repelir - ataques desumanos!
Chamavam-lhe garoto! E apenas com seis anos
Andara a apregoar diários de dez-réis.

Anoitecera então. O féretro sinistro
Cruzou com um coupé seguido dum correio,
E um democrata disse: "Aonde irás, ministro!
Comprar um eleitor? Adormecer num seio"?

E eu tive uma suspeita. Aquele cavalheiro,
- Conservador, que esmaga o povo com impostos -,
Mandava arremessar - que gozo! estar solteiro! -
Os filhos naturais à roda dos expostos...

Mas não, não pode ser – Deite-se um grande véu…
De resto, a dignidade e a corrupção… que sonhos!
Todos os figurões cortejam-no risonhos
E um padre que ali vai tirou-lhe o solidéu.

E o desgraçado? Ah! Ah! Foi para a vala imensa,
Na rumba, e sem adeus dos rudes camaradas:
Isto porque o patrão negou-lhes a licença,
O inverno estava à porta e as obras atrasadas.

E antes, ao soletrar a narração do facto,
Vinda numa local hipócrita e ligeira,
Berrara ao empreiteiro, um tanto estupefacto:
«Morreu!? Pois não caísse! Alguma bebedeira!»

Cesário Verde
in 'O Livro de Cesário Verde'



quarta-feira, 29 de novembro de 2017

Levantou-s, a velida - Dinis I




Levantou-s, a velida

Levantou-s´a velida,
levantou-s´alva
e vai lavar camisas
em no alto,
vai-las lavar alva.

Levantou –s´a louçana,
levantou-s´alva,
e vai lavar delgadas
em no alto,
vai-las lavar alto.

Vai lavar camisas,
levantou-s´alva,
o vento lhas desvia
em no alto,
vai-las lavar alva.

E vai lavar delgadas,
levantou-s´alva,
o vento lhas levava
em no alto,
vai-las lavar alva.

O vento lhas desvia,
levantou-s´alva,
meteu-s´alva em ira
em no alto,
vai-las lavar alva.

O vento lhas levava,
levantou-s´alva,
meteu-s´alva em sanha
em no alto
vai-las lavar alva.

 
D. Dinis
(1261-1325)


terça-feira, 28 de novembro de 2017

TERAPIA - Mario Benedetti




TERAPIA

Para no sucumbir
ante la tentación
del precipicio
el mejor tratamiento
es el fornicio