“O Almoço do Trolha de Júlio
Pomar”
Desastre
Ele
ia numa maca, em ânsias, contrafeito,
Soltando fundos ais e trêmulos queixumes;
Caíra dum andaime e dera com o peito,
Pesada e secamente, em cima duns tapumes.
A brisa que balouça as árvores das praças,
Como uma mãe erguia ao leito os cortinados,
E dentro eu divisei o ungido das desgraças,
Trazendo em sangue negro os membros ensopados.
Um preto, que sustinha o peso dum varal,
Chorava ao murmurar-lhe: "Homem não desfaleça!"
E um lenço esfarrapado em volta da cabeça,
Talvez lhe aumentasse a febre cerebral.
Flanavam pelo Aterro os dândis e as cocottes,
Soltando fundos ais e trêmulos queixumes;
Caíra dum andaime e dera com o peito,
Pesada e secamente, em cima duns tapumes.
A brisa que balouça as árvores das praças,
Como uma mãe erguia ao leito os cortinados,
E dentro eu divisei o ungido das desgraças,
Trazendo em sangue negro os membros ensopados.
Um preto, que sustinha o peso dum varal,
Chorava ao murmurar-lhe: "Homem não desfaleça!"
E um lenço esfarrapado em volta da cabeça,
Talvez lhe aumentasse a febre cerebral.
Flanavam pelo Aterro os dândis e as cocottes,
Corriam
char-à-Bancs cheios de passageiros
E
ouviam-se canções e estalos de chicotes,
Junto
à maré, no Tejo, e as pragas dos cocheiros.
Viam-se
os quarteirões da Baixa: um bom poeta,
A
rir e a conversar numa cervejaria,
Gritava
para alguns: «Que cena tão faceta!
Reparem!
Que episódio!» Ele já não gemia.
Findara honrosamente. As lutas, afinal,
Deixavam repousar essa criança escrava,
E a gente da província, atônita, exclamava:
"Que providências! Deus! Lá vai para o hospital!"
Por onde o morto passa há grupos, murmurinhos;
Mornas essências vêm duma perfumaria,
E cheira a peixe frito um armazém de vinhos,
Numa travessa escura em que não entra o dia!
Um fidalgote brada e duas prostitutas:
«Que espantos! Um rapaz servente de pedreiro!»
Bisonhos, devagar, passeiam uns recrutas
E conta-se o que foi na loja dum barbeiro.
Era enjeitado, o pobre. E, para não morrer,
De bagas de suor tinha uma vida cheia;
Levava a um quarto andar cochos de cal e areia,
Não conhecera os pais, nem aprendera a ler.
Depois
da sesta, um pouco estonteado e fraco,
Sentira
a exaltação da tarde abafadiça;
Quebravam-lhe
o corpinho o fumo do tabaco
E
o fato remendado e sujo de caliça.
Gastara
o seu salário – oito vinténs ou menos –
Ao
longe o mar, que abismo! E o sol, que labareda!
«Os
vultos, lá em baixo, oh! Como são pequenos!»
E
estremeceu, rolou nas atrações da queda.
O mísero a doença, as privações cruéis
Soubera repelir - ataques desumanos!
Chamavam-lhe garoto! E apenas com seis anos
Andara a apregoar diários de dez-réis.
Anoitecera então. O féretro sinistro
Cruzou com um coupé seguido dum correio,
E um democrata disse: "Aonde irás, ministro!
Comprar um eleitor? Adormecer num seio"?
E eu tive uma suspeita. Aquele cavalheiro,
- Conservador, que esmaga o povo com impostos -,
Mandava arremessar - que gozo! estar solteiro! -
Os filhos naturais à roda dos expostos...
O mísero a doença, as privações cruéis
Soubera repelir - ataques desumanos!
Chamavam-lhe garoto! E apenas com seis anos
Andara a apregoar diários de dez-réis.
Anoitecera então. O féretro sinistro
Cruzou com um coupé seguido dum correio,
E um democrata disse: "Aonde irás, ministro!
Comprar um eleitor? Adormecer num seio"?
E eu tive uma suspeita. Aquele cavalheiro,
- Conservador, que esmaga o povo com impostos -,
Mandava arremessar - que gozo! estar solteiro! -
Os filhos naturais à roda dos expostos...
Mas
não, não pode ser – Deite-se um grande véu…
De
resto, a dignidade e a corrupção… que sonhos!
Todos
os figurões cortejam-no risonhos
E
um padre que ali vai tirou-lhe o solidéu.
E
o desgraçado? Ah! Ah! Foi para a vala imensa,
Na
rumba, e sem adeus dos rudes camaradas:
Isto
porque o patrão negou-lhes a licença,
O
inverno estava à porta e as obras atrasadas.
E
antes, ao soletrar a narração do facto,
Vinda
numa local hipócrita e ligeira,
Berrara
ao empreiteiro, um tanto estupefacto:
«Morreu!?
Pois não caísse! Alguma bebedeira!»
Cesário Verde
in 'O Livro de Cesário Verde'
in 'O Livro de Cesário Verde'