POSFÁCIO
Foi
esta ideia semelhante à pérola,
crescendo,
como a pérola, no escuro
e
apurando a sua perfeição sem se dar conta
de que
o fazia, motivada apenas
pela
vontade de cercar o mal,
e
impedir que a doença respirasse
e tudo
envenenasse em seu redor,
destruindo
qualquer
expressão
de vida?
Sim,
teve essa ideia
a
beleza e o brilho de uma pérola?
Ou terá
vida, a ideia? Será ela
alguma
coisa latejante e física,
a
benigna bactéria que se adentra
pelo
cérebro animal e ilumina
zonas
até então desconhecidas,
zonas
do nobre pensamento,
enfim
liberto
das
coreografias da matilha,
tornando
humano o cérebro,
ensinando
dentro dele as palavras
com as
quais
o que
existia foi organizado
e o
poema nasceu,
a lei
nasceu.
Quando
alguém disse,
pela
vez primeira,
“democracia”,
houve a
revolução,
isto é,
tudo
rolou sobre si mesmo.
E, ao
levantar-se e recompor-se,
esse
real,
reconhecendo
embora os sítios
e as
pessoas,
constatou
que não eram os mesmos.
Viu os
ombros direitos,
para
sempre, julgava ele,
de modo
decisivo,
ombros
dos cidadãos que se afastavam
dos
joelhos, da lama original,
de
maneira que os olhos se encontravam
à mesma
altura.
E uma
alegria irrefletida,
o
arrebatamento
de
conferir
todo o
poder à fala e não
ao
ferro ou à riqueza ou ao que quer
que
abrira fossos
a
separar os cidadãos,
uma
alegria,
mãe da
arrogância, mãe do novo perigo
devido
aos erros de avaliação,
uma
alegria,
pérola
gigante
rolando
pelo chão
da
assembleia,
uma
alegria,
viva
como um pássaro
que
cruza o céu dos povos e os saúda,
uma
alegria onde, por instantes,
a
bondade habitou
deixou
nos rostos
de uma
cintilação extraordinária.
A
história não relata o pormenor,
não há
dele registo, não há prova,
pedra
nem documento.
Mas o
certo
é que
um grande relâmpago cobriu
os
recantos da terra.
Era um
relâmpago
de
certo modo sobrenatural,
não
resultando de uma carga elétrica
mas da
fulguração desse momento,
do
esplendor da ideia nas cabeças.
Também
em nós caiu essa alegria,
mãe da
arrogância,
e a
grande luz pousou
sobre a
manhã que as flores avermelhavam.
Era
muito manhã, por isso não
se
distinguiram bem,
o sol e
a fonte
de onde
emanava aquele deslumbramento.
Tudo
ali começava, o ano,
a era,
os
tambores e o abraço
e o
alimento.
A dança
sob os pés energizados,
e a
palavra, a volúpia da palavra,
essa
palavra que era o leite e o mel
e
corria nas ruas, ocupava
todo o
espaço das ruas,
levantada
como
folhagem pelo sopro
da
ideia.
Se
olharmos para trás, avistaremos
a
poalha doirada, avistaremos
ainda
os dias da libertação
reduzidos
a horas, a minutos,
a
pequenos detritos da memória
que, de
inúteis, se empurram
para a
valeta.
Recolhidos
em casa,
desertada
a Praça da Canção,
fechada
a porta
dos
acontecimentos exemplares,
dentro
de nós escurecido o espaço
que a
ideia, tão bela, iluminou,
estamos
nós prestes a dobrar o corpo,
a
entrar, de joelhos, na caverna,
mudos,
de novo, à espera de um clarão?
Hélia Correia
(18-04-2024)
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