quinta-feira, 23 de outubro de 2025

POSFÁCIO - Hélia Correia

Hélia Correia

POSFÁCIO

Foi esta ideia semelhante à pérola,

crescendo, como a pérola, no escuro

e apurando a sua perfeição sem se dar conta

de que o fazia, motivada apenas

pela vontade de cercar o mal,

e impedir que a doença respirasse

e tudo envenenasse em seu redor,

destruindo qualquer

expressão de vida?

Sim, teve essa ideia

a beleza e o brilho de uma pérola?

 

Ou terá vida, a ideia? Será ela

alguma coisa latejante e física,

a benigna bactéria que se adentra

pelo cérebro animal e ilumina

zonas até então desconhecidas,

zonas do nobre pensamento,

enfim liberto

das coreografias da matilha,

tornando humano o cérebro,

ensinando dentro dele as palavras

com as quais

o que existia foi organizado

e o poema nasceu,

a lei nasceu.

 

Quando alguém disse,

pela vez primeira,

“democracia”,

houve a revolução,

isto é,

tudo rolou sobre si mesmo.

E, ao levantar-se e recompor-se,

esse real,

reconhecendo embora os sítios

e as pessoas,

constatou que não eram os mesmos.

Viu os ombros direitos,

para sempre, julgava ele,

de modo decisivo,

ombros dos cidadãos que se afastavam

dos joelhos, da lama original,

de maneira que os olhos se encontravam

à mesma altura.

E uma alegria irrefletida,

o arrebatamento

de conferir

todo o poder à fala e não

ao ferro ou à riqueza ou ao que quer

que abrira fossos

a separar os cidadãos,

uma alegria,

mãe da arrogância, mãe do novo perigo

devido aos erros de avaliação,

uma alegria,

pérola gigante

rolando pelo chão

da assembleia,

uma alegria,

viva como um pássaro

que cruza o céu dos povos e os saúda,

uma alegria onde, por instantes,

a bondade habitou

deixou nos rostos

de uma cintilação extraordinária.

 

A história não relata o pormenor,

não há dele registo, não há prova,

pedra nem documento.

Mas o certo

é que um grande relâmpago cobriu

os recantos da terra.

Era um relâmpago

de certo modo sobrenatural,

não resultando de uma carga elétrica

mas da fulguração desse momento,

do esplendor da ideia nas cabeças.

 

Também em nós caiu essa alegria,

mãe da arrogância,

e a grande luz pousou

sobre a manhã que as flores avermelhavam.

Era muito manhã, por isso não

se distinguiram bem,

o sol e a fonte

de onde emanava aquele deslumbramento.

 

Tudo ali começava, o ano,

a era,

os tambores e o abraço

e o alimento.

A dança sob os pés energizados,

e a palavra, a volúpia da palavra,

essa palavra que era o leite e o mel

e corria nas ruas, ocupava

todo o espaço das ruas,

levantada

como folhagem pelo sopro

da ideia.

 

Se olharmos para trás, avistaremos

a poalha doirada, avistaremos

ainda os dias da libertação

reduzidos a horas, a minutos,

a pequenos detritos da memória

que, de inúteis, se empurram

para a valeta.

 

Recolhidos em casa,

desertada a Praça da Canção,

fechada a porta

dos acontecimentos exemplares,

dentro de nós escurecido o espaço

que a ideia, tão bela, iluminou,

estamos nós prestes a dobrar o corpo,

a entrar, de joelhos, na caverna,

mudos, de novo, à espera de um clarão?

 

Hélia Correia

(18-04-2024)

 

 

 

 

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