quinta-feira, 31 de julho de 2008

HERANÇA

Vamos brincar de Brasil?

Mas sou eu quem manda

Quero morar numa casa grande

Começou desse jeito a nossa história

Negro fez papel de sombra

E foram chegando soldados e frades

Trouxeram as leis e os Dez Mandamentos

Jabuti perguntou:

“— Ora é isso?”

Depois vieram as mulheres do próximo

Vieram imigrantes com alma a retalho

Brasil subiu até o 10.º andar

Litoral riu com os motores

Subúrbio confraternizou com a cidade

Negro coçou piano e fez música

Vira-bosta mudou de vida

Maitacas se instalaram no alto dos galhos

No interior

o Brasil continua desconfiado

A serra morde as carretas

Povo puxa bendito pra vir chuva

Nas estradas vazias

Cruzes sem nome marcam casos de morte

As vinganças continuam

Famílias se entredevoram nas tocaias

noites de reza e cata-piolho

Nas bandas do cemitério

Cachorro magro sem dono uiva sozinho

De vez em quando

a Mula-sem-cabeça sobe a serra

ver o Brasil como vai.

PADRE-NOSSOBRASILEIRO

(1964)

Olé Deus brasileiro, Deus de casa. Venha nos ajudar com a sua graça. Deixe o outro Deus metido em Roma (o que assusta as criancinhas que não rezam de noite), ocupado com a arrecadação de Padre-nossos. Fique aqui com a gente. O Brasil anda ruinzinho. Por favor, nos acuda (senão isso não vai). Precisamos de mágica. Queremos macumba. Feitiçaria. Qualquer coisa serve. um jeito de perdoar as nossas dívidas (de imposto de renda, taxas de consumo. O preço das coisas não pára. Imagine: cafezinho a 25 cruzeiros!) Não deixe o Brasil cair de novo em tentação e corrupção (desfalques na Caixa Económica, Instituto de Aposentadoria e outras coisas). O feijão preto de cada dia dê-nos hoje (feijão com charque, arroz, média-pão-com-manteiga). Queremos renovar os nossos entusiasmos. Ter de novo um Brasil cheio de ternura, com embalos de rede e cata-piolhos: essa “Nêga Fulô; um Brasil que se diverte nas ruas com o “Bumba-meu-boi”; Brasil do Ascêncio Ferreira: “Hora de trabalhar? Pernas pró ar”. Amem.

Raul Bopp

Hora de comer, -- comer!

Hora de dormir, -- dormir

Hora de vadiar, -- vadiar!

Hora de trabalhar?

-- Pernas pró ar que ninguém é de ferro!

(Ascêncio Ferreira)

AGOSTO

A ciência revelou-nos o que era óbvio: Os Humanos não são divisíveis por raças. Há no entanto uns menos humanos que outros: Os racistas.

Agosto. Lisboa é uma cidade sonolenta, aconchegada na modorra que o calor transporta. As ruas estreitas são canais de frescura, veias onde circulam os que lhe mantêm a tonicidade indispensável ao ritmo estival.

Hora de almoço. Restaurantes e tascos de portas amordaçadas. No interior, as cadeiras, em exercícios de equilíbrio, fazem o pino sobre as mesas; cenários de abandono cumprindo o calendário.

Aproveito as sombras somíticas que o sol do meio-dia nos permite. A cidade repousa, respira tranquilidade. O movimento é escasso. Sem pressas e muita curiosidade reparo na toponímia: “Conde Barão”. Sorrio. Conde e Barão... Que exagero! “Poço dos Negros”... Para quando a “Fonte dos Negros”? Pensei, matreiro, satisfeito pela ideia prenhe de malícia.

O olfacto guia-me não sei bem para onde; misturado com o podre das sarjetas, chega-me um odor a peixe grelhado. Sigo o filão: o cheiro encorpa, a curiosidade e a imaginação fundem-se em apetite, a mensagem vai-se tornando clara. Começo a aperceber-me do tipo de pescado que me espera; mais uma ruela, ainda outra... e um recanto de cenário tipicamente alfacinha surge, sem surpresa. No braseiro, à entrada da tasca, carapaus e sardinhas mostram-se, fumegantes, oferecendo-se a quem passa.

Cortadas a meio pelo sol que faz fronteira com a sombra que o afasta, quatro pequenas mesas, alinhadas com o assador, confundem-se com a parede.

O lugar é tranquilo, a frescura do peixe faz alarde. Aproveito a meia sombra de uma das mesas. Sento-me.

A higiénica e proletária toalha e guardanapo de papel não demoram, o simpático galheteiro não se faz esperar. E neste vai e vem do empregado, pronuncio: Carapaus.

Sóbrio e preciso, o breve monólogo ajustava-se à simplicidade do estabelecimento, além do mais não me apetecia falar, predisposto que estava a usufruir da oportunidade que a cidade me oferecia neste singular dia de Agosto.

Numa das restantes mesas, três operários comiam calmamente. Junto deles uma mulher falava, falava, falava. Mansamente, os homens continuavam a almoçar esboçando um sorriso de quando em vez.

Não longe de mim, os carapaus rechinavam na grelha deixando cair gotas de gordura como que dizendo: vais gostar!

Entretanto, a mulher continuava a pregar. Entretido que estava com o meu peixe e de apetite em crescendo, desejoso de um repasto calmo, o som agudo da sua voz começava-me a enfadar.

Continuava a falar dos pretos. Olhei-a. Tinha os olhos em mim, e quando se apercebeu que nela reparei subiu o tom de voz, ganindo: pretos. E sorrio-me./ Os operários, enlevados, chupavam as cabeças dos peixes que sublinhavam com um gole de tinto. Gente que sabe misturar sabores.

O sol teimava em não me libertar a mesa, os carapaus faziam-me negaças e não se despachavam, e a mulher, porque os três homens não lhe davam troco, virava para mim o discurso racista: os pretos, os pretos, os pretos.

Os meus olhos azuis num rosto branco, agora certamente lívido, tomaram-na por alvo.

Também sou racista!” disse. A mulher devolveu-me de imediato um jubiloso sorriso de reconhecimento. E não lhe dando tempo de maior euforia, continuei firme, seco: “Não posso com os brancos!”.

Numa metamorfose súbita, toda a sua expressão de alegria se transfigurou, dando lugar a um semblante amorfo onde o espanto e a perplexidade se confundiam. Fixava-me e não entendia, havia algo que a ultrapassava, não estava ouvindo bem ou não enxergava de feição.

E para que não lhe restassem dúvidas, repeti de modo compassado e agressivo: “Não posso com os brancos, ouviu bem!? E sabe porquê? Porque são os únicos que me têm lixado a vida.”

A catarse resultou, acalmei. Os carapaus, impecavelmente grelhados apresentaram-se-me alinhados, enfeitados com um raminho de salsa. Era carapau do branco, branquinho como eu. Não gosto do carapau negrão, prefiro o chicharro.

bem-humorado, ia degustando, deliciado, esta refeição tão nossa e repetia para comigo: os brancos me têm lixado, é certo, porque todos os outros não têm tido essa oportunidade

Quando dei uma espreitadela para o lado, os homens bebiam o café e a mulher eclipsara-se.

O vírus do racismo é assim, sempre presente; mantêm-se latente em todos os locais, intervêm se nos apanha desprevenidos e prolifera, rapidamente, se lho permitem, atingindo, por vezes, o grau epidémico.

segunda-feira, 28 de julho de 2008

A AGENDA

“Quem conhece os trabalhadores do meu país, conhece os de todo o mundo!”

(De um canteiro de Monsanto)

Enxotado, talvez seja o termo mais adequado à maneira como nessa manhã o trataram nos locais onde se dirigiu para pedir, melhor, mendigar emprego.

Cabisbaixo, regressava; não, regressar é voltar ao ponto de partida e ele caminhava, andava sem rumo, vagueava!

Há meses que este era o seu trabalho, o seu “perde-pão”. E, como que agarrado por um vício, deixara-se arrastar para junto dos portões daquela que fora a “sua” fábrica. Chamou-lhe sempre “minha” e, quando a perdeu, sentiu o desconforto de quem havia sido roubado.

A “sua” fábrica ligava-o à vida, vida vivida com entusiasmo, onde deu os primeiros passos no ofício, aprendeu a lutar, a viver!... Ela era, é, a sua identidade. Não lhe é possível relacionar nada, absolutamente nada, desligado de todo o seu mundo do trabalho, onde se construíra. Recordou o odor, o ruído das máquinas, a música das máquinas!... As lágrimas refugiavam-se-lhe na barba ao ver ao longe os vidros estilhaçados, prenúncio do fim, nos edifícios deixados ao abandono. E chorou, chorou como se chorasse a sua própria morte.

Olhou em redor, enxugou os olhos, apanhou uma agenda luxuosamente encadernada que pisara, remirou-a, abriu-a, desfolhou-a curioso. Em caligrafia cuidada leu: “Almoço de trabalho”. Almoço de trabalho?!... Encostou-se à parede mais próxima - estava em jejum - e procurou compreender como seria tamanha a tarefa. Lembrou-se da anedota em que no circo um homem comia sete perus, vinte bifes, três garrafões de vinho e bebia o último copo apressadamente porque tinha de ir jantar; e sorriu... Um sorriso baço, emprestado, um esgar. “Circo enorme este que espalhou os leões pela cidade!...” Ruminou.

Nos Dias Santificados, procurou o dos desempregados. Oh! Santa injustiça! Até Deus os esqueceu. Uma vaga oportuna para mais um santo, pensou.

Voltou a olhar para os portões fechados da “sua” fábrica, reabriu a agenda ao acaso e leu: “Ano-planing”. E, quando tentava decifrar o palavrão, ouviu a sirena para o retomar do trabalho. Um suor frio paralisou-o, sentiu-se desfalecer, a custo voltou a olhar para o portão agrilhoado. Alucinado, não viu mais que a enorme e robusta corrente apertada por um implacável cadeado. O receio de perder a razão tomou-o de pânico e, tentando estugar o passo, afastou-se perseguido pelo silvo que ora se tornava em lamento. Sentou-se no beiral de uma porta, cotovelos apoiados nos joelhos e as mãos tapando os ouvidos; e assim esteve, não sabe bem por quanto tempo.

Acalmou-se e voltou à agenda: “diferenças horárias”, leu. Fez as contas e concluiu que os seus camaradas de infortúnio no Brasil já se haviam levantado, e em alguns Estados da América do Norte os desempregados dormiam ainda, sonhando com uma sociedade justa, o mesmo é dizer humana.

Deu uma olhadela pelas unidades monetárias: Para os desempregados o Peso era igual ao Dólar, à Libra, ao Escudo e mesmo ao Euro. Os sem trabalho, desde há muito que têm a sua “moeda única”: O “zero”.

No final da agenda deparou com algumas páginas brancas. Calculou que eram destinadas aos desempregados. Pegou num lápis e foi escrevendo frases sem ligação, talvez mesmo sem nexo, palavras, interrogações, tudo o que lhe passava pela mente:

“Olhem para um desempregado como se fosse um espelho, e pensem!”

“O desempregado é o excluído, o intocável desta tão propalada civilização ocidental, exemplo e padrão do mundo moderno de que tantos se ufanam”.

“Onde se encontra o Cartel do desemprego que faz mais vítimas que a droga?!”

“Cães!” (Sem ofensa para o meu bom amigo “Farrusco”).

“O bem-estar alicerçado na miséria, o que é?”

“O desemprego é flagelo ou crime?”

“Peço desculpa por existir: Passivo!”

segunda-feira, 21 de julho de 2008

ÁGUIA

As águias não deviam ser aves
mas corações aduncos e com asas:

se olhares à flor dos campos e das casas
sentes o peito maior do que a amplidão:

se alguma coisa nasceu para voar
foi o teu coração.

Carlos de Oliveira