Caminhante, sãoteusrastos o caminho, e nadamais;
caminhante, não há caminho,
faz-se caminho ao andar.
Ao andar faz-se o caminho,
e ao olhar-se paratrás vê-se a sendaquejamais se há-de voltar a pisar.
Caminhante, não há caminho,
somentesulcos no mar.
* * * * * * *
Caminante, son tus huellas el camino y nada más; Caminante, no hay camino, se hace camino al andar. Al andar se hace el camino, y al volver la vistaatrás se ve la sendaquenunca se ha de volver a pisar. Caminante no hay camino sino estelas en la mar.
Esteiros "Para os filhos dos homens que nunca foram meninos, escrevi este livro."
Ilustrações de Álvaro Cunhal
Esteiros. Minúsculos canais, como dedos de mão espalmada, abertos na margem do Tejo. Dedos das mãos avaras dos telhais, que roubam nateiro às águas e vigores à malta. Mãos de lama que só o rio afaga.
O U T O N O
1
Fecharam os telhais. Com os prenúncios de outono, as primeiras chuvas encheram de frémito o lodaçal negro dos esteiros, e o vento agreste abriu buracos nos trapos dos garotos, num arrepio de águas e de corpos. Também sobre os fornos e engenhos perpassou lufada desoladora, que não deixava o fumo erguer-se para o alto. Que indústria como aquela queria vento, é certo; mas sol também. -- Vento para enxugar e sol para calcinar -- sentenciavam os mestres. Mas o sol andava baixo: não calcinava o tijolo, nem as carnes juvenis da malta. Menos por isso que pela fraqueza das vendas, os patrões não quiseram arriscar mais dinheiro nas fornadas. Ano mau... Todos os anos se dizia o mesmo. Desde que apareceu a telha francesa, e o bloco de cimento levou tudo de mal a pior. -- Indústria pobre, senhor Castro -- chorava-se o Zé Vicente ao pagar a renda do terreno. -- Indústria pobre... -- E era. Desde os garotos maltrapilhos aos valadores que vinham de muito longe -- sete horas de comboio, a sonhar jornas impossíveis. Por isso, agora, o dia sete de Setembro passava despercebido, sem festa. Dantes, era sagrado. Recebia-se a féria pagava-se os fiados de três meses e festejava-se a despedida. Os moços queimavam o resto das energias na ornamentação do telhal; arranjavam instrumentos de lata e cega-regas; desfilavam em cortejo. E, enquanto o caniço verde dos esteiros ondulava no alto dos fornos, as canas secas dos foguetes subiam ao ceu. Patrõese mestres sorriam, seguros da conciliação; moços e valadores cantavam, ansiosos de melhor vida. Bons tempos, aqueles! Os mestres ainda berravam, como dantes: -- Eh, gente! Vamos ligeiro, que esta fornadaé o resto. -- Mas a cadência dos assos não se alterava, porque o pessoal já sabia que ia pagar o descanso com sete meses de privações. Assim ficaram as eiras desertas. Apenas no Telhal Grande havia ainda algumas dezenas de tijolos que o mestre mandara pôr em fio, por causa do tempo ruim. E mesmo esses, depressa iriam engrossar as arrumas, bem cobertas de telha, e mais volumosas que quaisquer duas moradias da malta dos telhais. Ali se guardava o suor dum verão de fadigas, Vento e sol; fadigas e suor -- era o que os telhais queriam.
Trago notícias da fome que corre nos campos tristes: soltou-se a fúria do vento e tu, miséria, persistes. Tristes notícias vos dou: caíram espigas da haste, foi-se o galope do vento e tu, miséria, ficaste. Foi-se a noite, foi-se o dia, fugiu a cor às estrelas: e, estrela nos campos tristes, só tu, miséria, nos velas.
Era uma vezumcaso. O caso de Lenito, que conduziu do Barreiroaté Sintra e quequando chegou ao destino morreu de enfarte.
Na minhahumilde e terrenamodéstia pergunto: porque teve ele de fazer aquela viagem, fechado no carro, parado nosengarrafamentos da ponte e da A19 paradepoismorrer? Nãopoderiater morrido antes? Nãolhe podia ter sido poupado o sacrifício da viagem?
Quesentido de humorsinistrogoverna a perversidade do destinoindividual de todas as personagensque se mexem à nossavolta?
É queconduzir do Barreiroaté Sintra eraperfeitamentedispensável. E tudoparaquê? Porquê?
EraPáscoa, diadez de Março, e a tradição instituída no anoanterior obrigava-o a jantar na casa da mãe, em Setúbal; a dormir na casa da irmã, no Barreiro, na véspera, e almoçar na casa da sogra, em Sintra, no domingo. Vendo bem, era uma tradiçãomaisconveniente do que a dos trêsanosanteriores, com a obrigação de ir a Viseu almoçar a casa dos pais da sogra. A morte dos mesmos num acidente de viação, emLagos, no Verão, deslocara o centro da Páscoa de Viseu para Sintra. Abençoada.
O que o surpreendia era a falta de argumentossempreque se decidia o itineráriopara a Páscoa, queera tradicional, comoeraóbvio. Intocável e sagrado. O quelhe apetecia mesmo, todos os anos, eralargartudo e ficaremcasa, semfalar, ouirpara uma praia o maislongepossível de Viseu, de Sintra ou de Lagos. Mas acabava sempreporceder. Os miúdos…
Ela tratava de tudo. Amêndoas, ovos de chocolate, a escola deles, os castigospara as más notas, as repreensões, a família dele e os pais dela, irmãos, cunhados, amigos. E depois deixava-se ficarjunto da mãe à esperaqueele, o motoristaque a foralevar, regressasse a horaspara o almoço de famíliadepois de cumprir o programa de festasem Setúbal e no Barreiro.
O quemais gostava era o alíviodepois de tudoacabar, e voltar ao seusofá, na suasala de estar, na suacasa, no becomaisestreito do bairro da Socasa, entre a escola e o prado.
Emgeral, emFevereiro definia-se a estratégia. Ele tentava sempresugerir a alternativahabitual: de fazer uma Páscoadiferente, mas a respostaerasempre a mesma. Quedisparate! Queria matar a mãe de desgosto? E depois, os miúdos, que tinham de ver a avó, queelanunca os via, queera uma pena. Quetalvez no anoseguinte se pensasse nisso, ouquando os miúdos fossem mais crescidos. Seria inconvenientenãoirver a senhora a Viseu ou a Sintra. E ele a guiar.
E assim foi. Sexta-feira, feriado, carregou o carro de sacos e fez o trajecto habitualaté Setúbal. A mãe, na mesma. Queixosa. Quenunca a visitavam. E como estavam os miúdos. Jánão os conhecia. E a irmã, no Barreiro, nuncalá ia. E os filhos dela, se bemqueum deles erasó dela e não dele, mashojeemdia as coisas eram diferentes. Sairparaver o mar? Nempensar. A saúdenão o permitia. Quandomuitoumgalão no café da esquina.
Pouco a pouco, o monólogo dava lugar ao silêncio e o queixume à cumplicidade. Nuncamais ouviste falar dele? Não. E ficavam poraí.
E assim se passava a sexta-feira e o sábado, diaqueeraocupado no hipermercado, a ajudar a mãe nas compras e a carregar o carro de maissacos: hortaliçapara a irmã, frutapara os pequenos, pacotes de leite. E lá a deixava, curvada, junto à porta de alumínio a acenar. Até à próxima, no Natal.
O jantar na casa da irmã eracomo uma injecção indolordada num hospitalparticularondetodos os doentessãoigualmentebemtratados, desdeque paguem. Jantavam, viam um DVD escolhido pelomaisnovo e iam-se deitar. Dormia no sofá da sala, com repetidas recomendaçõesparanão se levantar no meio da noiteparanãoacordar os miúdos. De manhã levantava-se e comia de acordocom o horário e a ementa do maisnovo, saíam para o parque do jardimmaispróximo e ali ficavam presosdentro do gradeamento de plástico colorido a transportar o maisnovo do baloiço grafitado de verdepara o escorrega grafitado de azul. Almoçavam no McDonald’s, presente do tio, e ainda deixava umchequeparaajudar na comida. Ele, é claro, não podia comerpoistinha de estarem Sintra uma horadepoispara o almoço.
E assim, do Barreiropara Sintra, o Lenito voava, ultrapassando peladireita se fosse necessário, parando nas habituaisfilas, mastigando pastilhaelástica.
Nesse dia, chegado a Sintra foi recebido com o olharfrio da mulher. Atrasara-se meiahora e a sogra gostava de comer a horas. O borregotinha perdido a graça. E foi nesse momentoque se sentiu mal. Sentou-se num banco de pedrajunto à entrada e pediu umcopocomágua. Quedisparate, iam almoçar! Umavião riscava o céu, ao longe. As abelhas zumbiam fazendo a ronda a umcacho da glicínia rosaque trepava ao longo da parede caiada. O resto… O resto foi fulminante.
E o Lenito passou a sermaisumnúmeropara as estatísticas.