domingo, 30 de agosto de 2009

Três bêbados e um discurso

TRÊS BÊBADOS E UM DISCURSO

“As gripes de verão são como certas maiorias absolutas, chegam não se sabe como, sofremo-las e vimo-nos aflitos para nos livrarmos delas”

(Pensamento entre dois espirros marca AH1N1.)

Na Azinhaga do Asno nem todos são burros, mas bêbados há pelo menos três. Não têm mau vinho, e a seu gosto escolhem os diferentes modos de se emborracharem, como é de rigor a uma democracia que se preze. Cada qual gosta do que gosta, ninguém tem nada com isso.

À mesa da tasca a conversa é de lamentações; mesmo os que bebem para esquecer não conseguem olvidar alguns dos seus problemas.

O bem enfarpelado queixa-se que o gelo no whisky lhe causava soluços. O bebedor de cerveja confessa que passou a enfrascar-se com “minis”, porque o médico o aconselhou a beber menos. O terceiro tem um grande desgosto em não saber a razão porque gosta só do tinto.

Os três comparsas olharam de soslaio para a televisão e assistiram à entrada em cena de um senhor muito bem penteado, e escanhoado a preceito, sentado a uma mesa que mais parecia um espelho, tendo à sua direita, entre outras, a bandeira portuguesa.

O bebedor de “minis” pensou que iam tocar o hino nacional e tentou pôr-se de pé sem resultado; o que só bebia tinto disse-lhe que era um reclame ao produto mágico que põe as mesas a brilhar; o do whisky achava que era publicidade sim, mas à brilhantina ou às lâminas e pincéis para a barba.

A câmara fez um grande plano do actor, este esboçou um sorriso complacente, deu as boas noites como qualquer um dos nossos vizinhos com quem não estivéssemos zangados, gentileza a que todos responderam educadamente, e cumpridas estas primeiras e primárias formalidades o homem foi directo ao que ali o trouxera:

“Caros amigos. Quando for Primeiro-ministro...”

Não conseguiram ouvir mais nada. A Dona Arminda armou um chinfrim com o peixeiro, um escarcéu de tal ordem que o esganiço da sua voz enchia a Azinhaga:

“Aldrabão! Vigarista! Vai levar mas é...”

O patrão da tasca, com o cabo da vassoura aumentou o som do televisor, ouviu-se ainda “maioria absoluta” mas o penteadinho não conseguia abafar a Dona Arminda.

“Isso querias tu.” Gritava; “apregoas vivinha-da-costa e só vendes peixe podre. Levas com uma solha no focinho que nunca mais apareces aqui na Azinhaga”.

O carteiro, acabado de chegar, tranquilizou-os dizendo-lhes que logo a seguir, e em vários telejornais os analistas iriam comentar tudo, e ensinar-nos como deveríamos compreender o que o homem estava dizendo.

Que não estivéssemos preocupados; que qualquer imbecil iria entender; que os senhores da televisão sabiam que havia muita gente bêbada e parva e por isso gastavam muito dinheiro para mandar explicar tudo muito bem explicadinho, não houvesse alguém que ousasse contestar o que afirmava sua excelência.

Mais tranquilos os três amigos foram dissertando sobre o pouco que ouviram. No entender do “Minis” todos os primeiros-ministros, tal como os primeiros-sargentos deviam usar farda, boné e galões para se distinguirem dos segundos e terceiros ministros.

O senhor do whisky estava apreensivo. Encomendou uma “água das pedras” e disse aos seus companheiros que tudo o que é absoluto é preocupante, principalmente quando se trata de poder absoluto ou de maiorias absolutas, onde se constrói o absolutismo em que os governados deixam de ser ouvidos.

Os outros não compreenderam lá muito bem, mas solidários preocuparam-se também.

Os analistas e comentadores encarregar-se-ão do resto.

O penteadinho terminou a arenga, despediu-se e saiu de cena enquanto os três em uníssono arrotavam.

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