quinta-feira, 30 de agosto de 2012

Metam O burro na gaiola - Joaquim Namorado


Joaquim Namorado por Mário Dionísio, óleo s/ tela; 75 x 61, 1952,

 

Metam O burro na gaiola

.

Metam O
burro na gaiola
de doiradas
grades
e tratem-no a alpista
se quiserem
- é
um despropósito

Mas esperar dele o trinar
Do
canário melodioso
É
simplesmente tolo.”

Joaquim Namorado

quarta-feira, 29 de agosto de 2012

In memoriam do camponês desconhecido - António Cabral


Enterro do camponês - Gravura do artista plástico brasileiro Abelardo da Hora (1924)

In memoriam do camponês desconhecido

O que tinha setenta anos de terra,
um como tantos, morreu pela última vez.
Que umbral de papoilas receberia
devidamente o seu rosto vitorioso?
Quando entrou no cemitério,
o
orvalho cintilava em todas as roseiras
e
um pássaro de que não sei o nome
descreveu
alguns círculos e partiu.
Os calos floriam nas mãos dos homens,
as
mulheres perdiam-se no céu azul,
enquanto ele, um como tantos, regressava.
Eu te saúdo, irmão da urze bravia,
setenta
vezes setenta
anos de terra em flor e de miséria.

António Cabral
 (1931-2007)

sábado, 25 de agosto de 2012

Assim se faz o homem


Bertold Brecht

Assim se faz o homem
Assim se faz o homem:
dizendo
sim e dizendo não,
batendo e apanhando,
unindo-se a uns
aqui, a outros acolá.
Assim se faz o homem: transformando-se:
assim se forma em nós a sua imagem,
igual à nossa, no entanto diversa.

quinta-feira, 23 de agosto de 2012

MAS...




Mas...


E eu que achei que a lua não brilhasse

sobre os mortos no campo da guerrilha,

sobre a relva que encobre a armadilha

ou sobre o esconderijo da quadrilha,

mas brilha.

.

E achei que nenhum pássaro cantasse

Se um lavrador não mais colhe o que planta,

se uma família vai dormir sem janta

com um soluço preso na garganta,

mas canta.

.

Também pensei que a chuva não regasse

a folha cujo leite queima e cega,

a carnívora flor que o cego inseto pega

ou o espinho oculto na macega,

mas rega.

.

Pensei também que o orvalho não beijasse

a venenosa cobra que rasteja

no silêncio da noite sertaneja

sobre a ruína de esquecida igreja,

mas beija.

.

Imaginei que a água não lavasse

o chicote que em sangue se deprava

quando, de forma monstruosa e brava,

abre trilhas de dor na pele escrava,

mas lava.

.

Apostei que nenhuma borboleta

-por ser um vivo exemplo de esperança-

dançaria contente, leve e mansa

sobre o túmulo em flor de uma criança,

mas dança.

.

Por isso achei que eu não mais fizesse

poema algum após tanto embaraço,

tanta decepção, tanto cansaço

e tanta espera, em vão, por teu abraço,

mas faço.

Antônio Roberto Fernandes

sábado, 11 de agosto de 2012

Meu galope é em frente


Mário Dionísio por Júlio Pomar, 1950

Meu galope é em frente


Direis que não é poesia
e a
mim que importa?
Eu canto porque a voz nasce e tem de libertar-se.
E
grito porque respondo
às
lanças que me espetam
e aos
braços que me chamam,
E
porque, dia e noite, minhas mãos e meus olhos,
por estranhas telegrafias,
dos
cantos mais ignotos
e das
linhas perdidas
e dos
campos esquecidos
e dos
lagos remotos,
e dos
montes,
recebem longas
mensagens e comunicações:
para que grite e cante.
O meu grito e meu canto é a voz de milhões.
Por isso que me importa?
Eu canto e cantarei o que tiver a cantar
e
grito e gritarei o que tiver a gritar
e
falo e falarei o que tiver a falar.
Direis que não é poesia.
E a
mim que importa
se
eu estou aqui apenas para escancarar a porta
e
derrubar os muros?
E a
mim que importa
se
vós sois afinal o que hei-de ultrapassar
e
esmigalhar
em nome
de
todos os futuros?
Eu sigo e seguirei.
como um doido ou um anjo,
obstinado e heróico a caminho de nós
em palavras e acções
por todos os vendavais
e
temporais
e
multidões
nos cantos mais ignotos
e nas
linhas perdidas
e
nos campos esquecidos
e
nos lagos remotos
e
nos montes
-
por terra, mar e ar.
Direis que não é poesia
E a
mim que importa!
Convosco ou não, meu galope é em frente.
Pertenço a
outra raça, a outro mundo, a outra gente.
É andar, é andar!
Mário Dionísio

quinta-feira, 2 de agosto de 2012