quarta-feira, 19 de março de 2014

CONVERSA COM O LIXEIRO - Carlos Drummond de Andrade



CONVERSA COM O LIXEIRO

Amigo lixeiro, mais paciência.

Você não pode fazer greve.

Não lhe falaram isto, pela voz

do seu prudente sindicato?

Não sabe que sua pá de lixo

é essencial a segurança nacional?

...

A lei o diz (decreto-lei que

nem sei se pode assim chamar-se,

em todo caso papel forte,

papel assustador). Tome cuidado,

lixeiro camarada, e pegue a pá,

me remova depressa este monturo

que ofende a minha vista e o meu olfato.



Você já pensou que descalabro,

que injustiça ao nosso status ipanêmico, lebloniano, sanconrádico, barramárico, se as calçadas da Vieira Souto e outras conspícuas vias de alto coturno continuarem repletas de pacotes, latões e sacos plásticos (estes, embora azuis), anunciando uma outra e feia festa: a da decomposição mor das coisas do nosso tempo, orgulhoso de técnica e de cleaning?



Ah, que feio, meu querido,

essa irmanar de ruas, avenidas,

becos, bulevares, vielas e betesgas e tatatá do nosso Rio tão turístico e tão compartimentado socialmente, na mesma chave de perfume intenso que Lanvin jamais assinaria!



Veja você, meu caro irrefletido:

a Rua Cata-Piolho, em Deus-me-livre,

equiparada à Atlântica Avenida

(ou esta àquela)

por idêntico cheiro e as mesmas moscas

sartrianamente varejando,

os restos tão diversos uns dos outros,

como se até nos restos não houvesse

a diferença que vai do lixo ao luxo!



Há lixo e lixo, meu lixeiro.

O lixo comercial é bem distinto

do lixo residencial, e este, complexo,

oferece os mais vários atrativos

a quem sequer tem lixo a jogar fora.

Ouço falar que tudo se resume

em você ganhar um pouco mais

de mínimos salários.

Ora essa, rapaz: já não lhe basta

ser o confiável serviçal

a que o Rio confere a alta missão

de sumir com seus podres, contribuindo

para que nossa imagem se redobre

de graças mil sob este céu de anil?



Vamos, aperte mais o cinto,

se o tiver (barbante mesmo serve)

e pense na cidade, nos seus mitos

que cumpre manter asseados e luzidos.



Não me faça mais greve, irmão-lixeiro.

Eu sei que há pouco pão e muita pá,

e nem sempre ou jamais se encontram dólares, jóias, letras de câmbio e outros milagres no aterro sanitário.



E daí? Você tem a ginga, o molejo necessários para tirar de letra um samba caprichado naqueles comerciais de televisão, e ganhar com isto o seu cachê fazendo frente ao torniquete da inflação.



Pelo que, prezadíssimo lixeiro,

estamos conversados e entendidos:

você já sabe que é essencial

à segurança nacional

e, por que não, à segurança multinacional.


Carlos Drummond de Andrade

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