CONVERSA COM O LIXEIRO
Amigo lixeiro,
mais paciência.
Você não pode
fazer greve.
Não lhe falaram
isto, pela voz
do seu prudente
sindicato?
Não sabe que sua
pá de lixo
é essencial a
segurança nacional?
...
A lei o diz
(decreto-lei que
nem sei se pode
assim chamar-se,
em todo caso
papel forte,
papel
assustador). Tome cuidado,
lixeiro
camarada, e pegue a pá,
me remova
depressa este monturo
que ofende a
minha vista e o meu olfato.
Você já pensou
que descalabro,
que injustiça ao
nosso status ipanêmico, lebloniano, sanconrádico, barramárico, se as calçadas
da Vieira Souto e outras conspícuas vias de alto coturno continuarem repletas
de pacotes, latões e sacos plásticos (estes, embora azuis), anunciando uma
outra e feia festa: a da decomposição mor das coisas do nosso tempo, orgulhoso
de técnica e de cleaning?
Ah, que feio,
meu querido,
essa irmanar de
ruas, avenidas,
becos,
bulevares, vielas e betesgas e tatatá do nosso Rio tão turístico e tão
compartimentado socialmente, na mesma chave de perfume intenso que Lanvin
jamais assinaria!
Veja você, meu
caro irrefletido:
a Rua
Cata-Piolho, em Deus-me-livre,
equiparada à
Atlântica Avenida
(ou esta àquela)
por idêntico
cheiro e as mesmas moscas
sartrianamente
varejando,
os restos tão
diversos uns dos outros,
como se até nos
restos não houvesse
a diferença que
vai do lixo ao luxo!
Há lixo e lixo,
meu lixeiro.
O lixo comercial
é bem distinto
do lixo
residencial, e este, complexo,
oferece os mais
vários atrativos
a quem sequer
tem lixo a jogar fora.
Ouço falar que
tudo se resume
em você ganhar
um pouco mais
de mínimos
salários.
Ora essa, rapaz:
já não lhe basta
ser o confiável
serviçal
a que o Rio
confere a alta missão
de sumir com
seus podres, contribuindo
para que nossa
imagem se redobre
de graças mil
sob este céu de anil?
Vamos, aperte
mais o cinto,
se o tiver
(barbante mesmo serve)
e pense na
cidade, nos seus mitos
que cumpre
manter asseados e luzidos.
Não me faça mais
greve, irmão-lixeiro.
Eu sei que há
pouco pão e muita pá,
e nem sempre ou
jamais se encontram dólares, jóias, letras de câmbio e outros milagres no
aterro sanitário.
E daí? Você tem
a ginga, o molejo necessários para tirar de letra um samba caprichado naqueles
comerciais de televisão, e ganhar com isto o seu cachê fazendo frente ao
torniquete da inflação.
Pelo que,
prezadíssimo lixeiro,
estamos
conversados e entendidos:
você já sabe que
é essencial
à segurança
nacional
e, por que não,
à segurança multinacional.
Carlos Drummond de Andrade
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