sexta-feira, 30 de maio de 2014

Nesta hora - Sophia de Mello Breyner Andresen

Nesta hora

Nesta hora limpa da verdade é preciso dizer a verdade toda
Mesmo aquela que é impopular neste dia em que se invoca o povo
Pois é preciso que o povo regresse do seu longo exilio
E lhe seja proposta uma verdade inteira e não meia verdade

Meia verdade é como habitar meio quarto
Ganhar meio salário
Como só ter direito
A metade da vida

O demagogo diz da verdade a metade
E o resto joga com habilidade
Porque pensa que o povo só pensa metade
Porque pensa que o povo não percebe nem sabe

A verdade não é uma especialidade
Para especializados clérigos letrados

Não basta gritar povo
É preciso expor
Partir do olhar da mão e da razão
Partir da limpidez do elementar

Como quem parte do sol do mar do ar
Como quem parte da terra onde os homens estão

Para construir o canto do terrestre
- Sob o ausente olhar silente de atenção -

Para construir a festa do terrestre
Na nudez de alegria que nos veste. 
Sophia de Mello Breyner Andresen
20 de Maio de 1974

terça-feira, 27 de maio de 2014

Mário Henrique-Leiria - A Invenção da Água




 A Invenção da Água

 

Como muito bem se sabe, no princípio não havia água.
Só havia o verbo.
Depois apareceram o sujeito e o complemento directo.
Mas de água, nada.

Então todos começaram a beber vinho e deus achou que era bom.
E lá isso era!

No entanto, com o aparecimento das primeiras culturas
do tipo comercial, tornou-se evidente
a falta de qualquer coisa
que pudesse aumentar a produção do vinho
e torná-lo mais rentável.

Era a água, claro.

Mas não havia água, como já fizemos notar.
As primeiras pesquisas,
então ainda bastante primitivas,
levaram à descoberta da água-pé.

Embora curiosa, essa descoberta não resolveu,
de forma alguma, o fim pretendido.
Continuava a não haver água. As pesquisas prosseguiram.

Felizmente o homem é assim, nunca desiste.
É isso que faz o progresso.
E largos tempos passados chegou-se a nova descoberta:
a aguardente.

Era melhor, não duvidemos, mas realmente não era o desejado.
Faltava a água. Definitivamente.
As civilizações pastoris, no seu nomadismo constante,
descobriram, acidentalmente, a água-bórica que,
aliás, nunca serviu para nada. Coisas de nómades.

Foi então que no seio das culturas orientais
mais avançadas tecnologicamente,
surgiu a grande invenção:
um misterioso pó branco que,
deitado em mínima quantidade num litro de água,
o convertia,
quase milagrosamente,
num litro de água.
ESTAVA INVENTADA A ÁGUA

Inicialmente rara e só usada para fazer vinho,
tornou-se no entanto com o desenvolvimento industrial,
bastante acessível e abundante.

Ergueram-se os primeiros lagos,
deu-se início aos rios pequeninos e,
finalmente surgiram os rios maiores,
aqueles muito grandes,
que consta várias pessoas já terem visto por aí.

Este progressivo desenvolvimento líquido
teve como consequência
o aparecimento de poderosas civilizações marítimas,
que se desenvolveram de tal maneira que nos puseram
no brilhante estado em que nos encontramos.

É o que fazem as invenções.

No entanto, e mesmo com a actual abundância,
não devemos abusar, dada a tremenda
explosão demográfica que se está registando.

Parece-nos mais prudente beber gin. Sempre. 

Mário Henrique-Leiria


segunda-feira, 26 de maio de 2014

POEMA RECENTE



«Desta vez, o PCP ganhou mesmo. Não é preciso aquela retórica oficial, tão típica de noites que correm mal, porque desta vez correu muito bem. E não foi por acaso: o PCP foi o único partido que soube aproveitar a austeridade violenta, o desemprego elevado e o desencanto geral. Manteve o discurso mas não se ficou por aí, ao contrário do Bloco de Esquerda. Percebeu que ia ser beneficiado, mas soube unir-se, ao contrário do PS. Renovou rostos no parlamento, mudou a liderança da CGTP, criou um cabeça de lista nas europeias e tomou conta dos protestos de rua, pondo o "Que se lixe a troika" no bolso em poucos meses.»
(Expresso online 26/5/14)

terça-feira, 20 de maio de 2014

PRIVATIZADO - Bertold Brecht


PRIVATIZADO

“Privatizaram sua vida, seu trabalho, sua hora de mar e o direito de pensar.

É da empresa privada o seu passo em frente,

seu pão e seu salário. E agora não contentes querem

privatizar o conhecimento, a sabedoria,

o pensamento, que só à humanidade pertence.”

Bertold Brecht

segunda-feira, 19 de maio de 2014

19 de Maio de 1954 - CATARINA EUFÉMIA

CINQUENTENÁRIO DO ASSASSINATO DE
CATARINA EUFÉMIA


O poema de Eduardo Valente da Fonseca  (1928-2003) é o mais antigo em publicação (Maio de 1966); talvez antecedido pelo do Alexandre O´Neill, que foi o último a ser divulgado.
 
Deve tratar-se de uma edição semi-clandestina de pequena tiragem e distribuída clandestinamente.


UNIDOS, CAMARADAS


Cala-te amigo
Ouve... é a flor do trigo
Chorando CATARINA assassinada
Cala-te amigo
Nós não somos flor de trigo
Choremos doutro modo camarada

Que sejam nossas lágrimas passadas de firmeza
No posto de combate dos nossos ideais
RUMO À VITÓRIA até que não haja nunca mais
Quadrilhas de assassinos na terra portuguesa

Cala-te amigo! Forjemos na unidade
De CATARINA o sonho de rutila beleza
UM PORTUGAL FELIZ EM PAZ E LIBERDADE.


Muitos mais poetas dedicaram poemas a Catarina Eufémia - António Ferreira Guedes, Carlos Aboim Inglez, José Carlos Ary dos Santos, Sophia de Mello Breyner Andresen, entre muitos outros. O de Sophia é particularmente belo. Mas hoje só quis referir-me aos que foram Papiniano Carlos,  escritos antes de 25 de Abril de 1974 em circunstâncias diferentes. Muito diferentes.