sexta-feira, 31 de julho de 2015

Gosto de Assistir à Ceia dos Casais Populares - Daniel Abrunheiro



III. Gosto de Assistir à Ceia dos Casais Populares

Ibidem

Gosto de assistir à ceia dos casais populares na casa-de-pasto.
O casal de hoje é jovem, ela para aí uns 24, ele trinta e picos.
Um menino, claro: na província, a prenhez é que matrimonifica.
Derredor, os homens de rostos roxos azeitonam-se, indiferentes àquela espécie de felicidade em triplicado.

Eu agora tenho tempo na vida para gostar de ver.
(Mais de ver que de viver.)
Gosto deste casal + 1 como já de tantos outros escrevigostei.
Gosto que seja um verso aquela dose para dois e para poupar.
É um verso escrito a tinta de lulas guisadas com batata cozida.
A senhora bebe gasosa, ele bebe um jarrito de rubis.
O menino não come nada, adormeceu, coitadinho.

Os meninos de agora não são como os do meu tempo.
Os meninos de agora passam a vida com os avós-creches.
Os meninos de agora passam a vida à espera dos pais.
Os pais chegam-lhes com a noite, bovinos de cansaço do campo.
Esta mãe esteve todo o dia na escola a lavar a escola.
Este pai todo o dia andaimou matérias de reboco.

Gosto de Portugal.

Daniel Abrunheiro

terça-feira, 28 de julho de 2015

Estão Todas as Verdades à Espera em Todas as Coisas - Walt Whitma



Estão Todas as Verdades à Espera em Todas as Coisas
 
Estão todas as verdades
à espera em todas as coisas:
não apressam o próprio nascimento
nem a ele se opõem,
não carecem do fórceps do obstetra,
e para mim a menos significante
é grande como todas.
(Que pode haver de maior ou menor
que um toque?)

Sermões e lógicas jamais convencem
o peso da noite cala bem mais
fundo em minha alma.

(Só o que se prova
a qualquer homem ou mulher,
é que é;
só o que ninguém pode negar,
é que é.)

Um minuto e uma gota de mim
tranquilizam o meu cérebro:
eu acredito que torrões de barro
podem vir a ser lâmpadas e amantes,
que um manual de manuais é a carne
de um homem ou mulher,
e que num ápice ou numa flor
está o sentimento de um pelo outro,
e hão-de ramificar-se ao infinito
a começar daí
até que essa lição venha a ser de todos,
e um e todos nos possam deleitar
e nós a eles.
Walt Whitma
 in "Leaves of Grass"


segunda-feira, 27 de julho de 2015

QUOTIDIANOS - Eduardo Valente da Fonseca



QUOTIDIANOS


Não tenho interesse nenhum em ser rico.
Compreendo o vosso espanto,
Mas compreendo mesmo perfeitamente o vosso espanto.
Confesso que é até por causa dele
Que não tenho nenhum interesse em ser rico.

Eduardo Valente da Fonseca
em Mitologia do Nosso Cotidiano
Edição do Autor, 1959

terça-feira, 21 de julho de 2015

Ana e António - Mário Castrim



Ana e António
 
A Ana e o António trabalhavam 
na mesma empresa.
Agora foram ambos despedidos.
Lá em casa, o silêncio sentou-se
em todas as cadeiras
em volta da mesa vazia.
«Neo-Realismo!» dirão os estetas
para quem ser despedido
é o preço do progresso.
Os estetas, esses, nunca
serão despedidos.
Ou julgam isso, ou julgam isso.

Mário Castrim
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domingo, 19 de julho de 2015

Canção dos que vivem das suas mãos - Jesús López Pacheco




Canção dos que vivem das suas mãos




Não peço o de ninguém.
Apenas o meu pão,
meu ar.

Apenas a flor,
o fruto do que fazem minhas mãos.


Jesús López Pacheco