Eu dedico este prémio a uma entidade que é para mim pessoalíssima, à
Grécia, cuja voz ainda paira sobre as nossas mais preciosas palavras, entre as
quais, quase intacta, a poesia. Dedico à Grécia, sem a qual não teríamos
aprendido a beleza, sem a qual não teríamos nada ou, no dizer da Doutora Maria
Helena da Rocha Pereira, "não seríamos nada".
ζουν Ελλ?δα , zoun Elláda, viva a
Grécia.
Ditosa língua
HELIA CORREIA
07/07/2015 - 16:09 pÚBLICO
"Na
ditadura da economia, a palavra é esmagada pelo número. Se a literatura salva?
Não, não salva. Mas se ela se extinguir, extingue-se tudo." Hélia Correia recebeu
esta terça-feira o Prémio Camões em Lisboa. Este é o texto que a escritora leu
na entrega.
Hélia Correia recebeu o Prémio
Camões 2015 na terça-feira em Lisboa
O peso destes nomes
curvaria gente bem mais robusta do que eu, não fosse o caso de a leveza ser o
primeiro atributo de um escritor. Aliás, quanto mais os frequentamos, menor
pavor inspira a sua sombra.
Não venho aqui como parceira mas como íntima, como
alguém mais ligado pelo amor do que por ambições identitárias. Com Luis de
Camões passeio em Sintra, enquanto ele espera o jovem rei que anda pelos
bosques, enfeitiçado, já um pouco ensandecido. E a ligação aos meus
contemporâneos, Sophia e Saramago, Eduardo Lourenço, Maria Velho da Costa, Mia
Couto, feita de encantamento e aprendizagem, toca-me infantilmente o coração
quando me traz afinidades, uma flor de frangipani que esvoaça num jardim de
Maputo, as palavras que não partiram com quem já partiu, uma tão querida voz ao
telefone, uma carta enfeitada de papoulas. Estou com eles, não entre eles. E
assim estou bem.
Devo falar de tripla gratidão: a gratidão aos
promotores deste prémio ao qual foi dado o nome maior das nossas letras, a
gratidão aos membros do júri que escolheram a minha escrita para tamanha
dádiva, a gratidão a um acaso de nascimento que me deu como língua materna o
português.
Também com gratidão evoco a tão citada, e mal,
passagem escrita por Pessoa, aliás Bernardo Soares, pois que, achando-se
escrita, e por ele escrita, me abre um certo caminho à ousadia: que amo mais a
língua do que a pátria. Que me imagino armada, a defendê-la contra quem a
quisesse aniquilar. As lutas pela independência que travámos deixam-me o
arrepio de pensar que o português se perderia, se perdêssemos. Que morte há de
ter sido a de Camões, julgando que morria com a pátria, isto é, com o lugar dos
seus poemas!
Rodrigues Lobo formulou-lhe o elogio de maneira
concisa e musical ("branda para deleitar, grave para engrandecer, eficaz
para mover, doce para pronunciar, breve para resolver") durante a ocupação
filipina. Os rumos da política eram uns, o castelhano em palácio havia muito
que se fazia ouvir, mas essa língua da nação, tão acabada que sem esforço hoje
a lemos, tão fadada para arrebatamentos de oratória como para a sátira, como
para o lirismo, cultivando sem vénia a erudição para logo a seguir brincar com
ela, essa língua era a grande resistente – não a expressão de um povo: a sua
essência.
Faz agora oito séculos esta língua. É a prosa formal
de um testamento que atesta a data. E prosas há tão belas naquele dealbar, tão
saborosas ainda quando anónimas, que dir-se-iam um bom pressentimento sobre o
tanto e o tão grandioso que depois ia ser escrito. Mas é na poesia que parece
avistar-se um destino, no sentido não de fatalidade mas daquilo a que alguns
chamam o talento colectivo e que talvez não passe de especial, convidativa
variedade na fonética.
Fácil é para nós esta função de herdeiros de tesouro
tão diverso e tão bem acabado, tão antigo e, no entanto, tão reconhecível.
Enquanto noutras línguas a pronúncia se foi modificando, a ponto de uma rima do
século XIX já não se efectivar passadas décadas, nós cantamos Camões sem que se
torne necessária qualquer adaptação. Como se cada uma das palavras reconhecesse
o seu momento de perfeição e nele se detivesse, porque o quis. O apetite pelos
estrangeirismos, moderado que foi, não lhe fez mal. Incorporou-os
elegantemente. Não me refiro às condições presentes, pois, do que ninguém sabe,
ninguém fala. E ninguém sabe o que está hoje a acontecer.
O português carregará
ainda alguma febre imperial no corpo e é natural que desconfiem dele. Se chega
às terras de outros povos na bagagem do colonizador, em breve sai e se desnuda
e se alimenta, e adormece e procria. As armaduras ficam no chão, enferrujadas,
podres.
Esta paixão pela língua portuguesa, que aqui confesso,
cega não será, superlativa muito menos. Entendo-a rica, porque vem das boas
famílias dos antigos e o que recebeu multiplicou. Mas nunca afirmarei que é a
mais rica ou a mais bela do mundo. Cada povo verá no seu idioma mais virtudes
que em idiomas alheios. Que a disputa, se a houver, seja festiva, pois que os
idiomas não ocupam espaço e não geram rivais mas poliglotas. Anterior à festa,
está, porém, aquilo que dizem História. E a História é bruta e territorial.
Para abordar o assunto do domínio da língua portuguesa
sobre os povos são necessários delicadeza e conhecimento, inteligência e
desassombro em dose máxima. Dou-me por incapaz e renuncio a uma tentativa de
discurso. Sei, sim, que houve opressão e apagamento. Mas talvez não nos caiba
desculparmo-nos pelos conceitos e acções de antepassados, visto que não nos
assumimos legatários e o continuum moral já foi cortado. Algum
dia teremos, quero crer, a congratulação como vingança.
As línguas são os únicos seres vivos que não têm
origem natural. O erro humano pode prolongar-se, mesmo inocentemente, por
descuido. O português carregará ainda alguma febre imperial no corpo e é
natural que desconfiem dele. Mas acontece que a repressão é mecânica e a língua
é biológica. Se chega às terras de outros povos na bagagem do colonizador, em
breve sai e se desnuda e se alimenta, e adormece e procria. As armaduras ficam
no chão, enferrujadas, podres. A formação orgânica progride.
Que desígnio será o seu, agora, se não o de trocar e
conviver, isto é, integrar a plenitude, reconhecendo e respeitando a
alteridade? Com os nossos instrumentos humanistas, seremos nós os capazes de
"Medir", como escreve o Professor Eduardo Lourenço, "esse
impalpável mas não menos denso sentimento de distância cultural que separa, no
interior da mesma língua, esses novos imaginários"?
Como num pesadelo, não sabemos por que meio fomos dar
a esta nova era de horror e de destruição. Umas são nossas velhas conhecidas,
outras indecifráveis, por ausência de modelos anteriores. Não lhes antecipámos
a chegada. Na Idade Média que nos ameaça não há cancioneiros nem reis-poetas.
Na ditadura da economia, a palavra é esmagada pelo número. A matemática, que
começou nobre, aviltou-se, tornando-se lacaia. Se a literatura salva? Não, não
salva. Mas se ela se extinguir, extingue-se tudo.
O nosso mundo de sobreviventes está seguro por laços
muitos finos. Eu vejo os fios que unem os textos nas diversas versões do
português, leves fios resistentes e aplicados a construirem uma teia que não
rasgue. Quando o angolano Ondjaki dedica um poema ao brasileiro Manoel de
Barros, quando Mia Couto reconhece a influência que teve Guimarães Rosa na sua
escrita transfiguradora e transfigurada pelas africanas narrativas do seu povo;
quando a portuguesa Maria Gabriela Llansol considera Lispector «uma irmã
inteiramente dispersa no nevoeiro», vemos a língua portuguesa a ocupar - não
como o invasor ocupa a terra, mas como o sangue ocupa o coração - um espaço
livre, um sítio para viver, uma comunidade de diferenças elástica, simbiótica e
altiva. Esta é a ditosa língua, minha amada.
Eu dedico este prémio a uma entidade que é para mim
pessoalíssima, à Grécia, cuja voz ainda paira sobre as nossas mais preciosas
palavras, entre as quais, quase intacta, a poesia. Dedico à Grécia, sem a qual
não teríamos aprendido a beleza, sem a qual não teríamos nada ou, no dizer da
Doutora Maria Helena da Rocha Pereira, "não seríamos nada".
ζουν Ελλ?δα , zoun Elláda, viva a Grécia.
1 comentário:
Gostei de ler - sinto-me um gago.
Um abraço grego - eu Pata Negro
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