segunda-feira, 31 de julho de 2017

Nós, Latino-americanos - Ferreira Gullar


Nós, Latino-americanos

Somos todos irmãos
Mas não porque tenhamos
A mesma mãe e o mesmo pai:
Temos é o mesmo parceiro que nos trai.

Somos todos irmãos
Não porque dividamos
O mesmo teto e a mesma mesa:
Dividimos a mesma espada
Sobre nossa cabeça.

Somos todos irmãos
Não porque tenhamos
O mesmo berço, o mesmo sobrenome:
Temos um mesmo trajeto
De sanha e fome.

Somos todos irmãos
Não porque seja o mesmo o sangue
Que no corpo levamos:
O que é o mesmo é o modo
Como o derramamos.

Ferreira Gullar

domingo, 30 de julho de 2017

La Ventana - Mariana Montalvo

(Chile, cântico popular de resistência)

La Ventana


Miré tu cara por la ventana
y en cuna firme
pesado sueño se convocaba
para cubrirte,
ay, ay, ay,
para cubrirte.

Tiempo tras tiempo te fui cuidando
tras la ventana
en que los libros letra por letra
se te entregaban,
ay, ay, ay,
se te entregaban.

Cuántas ventanas tiene la vida entera,
cuántas ventanas,
¡quién lo creyera!

Por la ventana que el estudiante
triste vigila
oíste un día la voz quemante
de la guerrilla,
ay, ay, ay,
de la guerrilla.

Y otra ventana -tiempo más tarde-
te dio el encierro,
y en vez de vidrios tenía dedos
de hierro negro,
ay, ay, ay,
de hierro negro.

Cuántas ventanas tiene la vida entera,
cuántas ventanas,
¡quién lo creyera!

Cortaste el hierro, saltaste el muro,
corriste afuera,
y la metralla volteó mi sangre
sobre la tierra,
ay, ay, ay,
desde tus venas.

Duerme tan hondo bajo la piedra
el hijo niño,
pero en la lucha del guerrillero
viviendo altivo,
ay, ay, ay,
yo lo diviso.

Con cada hombre caído, hora tras hora,
crece la lucha
libertadora.

sábado, 29 de julho de 2017

A Jorge de Sena, no chão da Califórnia - Eugénio de Andrade

A Jorge de Sena, no chão da Califórnia

É por orgulho que já não sobes
as escadas? Terás adivinhado
que não gostei desse ajuste de contas
que foi a tua agonia?
É só por isso que não vieste
este verão bater-me à porta?
Não sabes já
que entre mim e ti
há só a noite e nunca haverá morte?

Não te faltou orgulho, eu sei;
orgulho de ergueres dia a dia
com mãos trementes
a vida à tua altura
− mas a outra face quem a suspeitou?
Quem amou em ti
o rapazito frágil, inseguro,
a irmã gentil que não tivemos?

Escreveste como o sangue canta:
de-ses-pe-ra-da-men-te,
e mostraste como não é fácil
neste país exíguo ser-se breve.
Talvez o tempo te faltasse
para pesar com mão feliz o ar
onde sobrou
um juvenil ardor até ao fim.

No que nos deixaste há de tudo,
desde o copo de água fresca
ao uivo de lobos acossados.
Há quem prefira ler-te os versos,
outros a prosa, alguns ainda
preferem o que sobre a liberdade
de ser homem
foste deixando por aí
em prosa ou verso, e tangível
brilha
onde antes parecia morta.

Às vezes orgulhavas-te
de ter, em vez de uma, duas pátrias;
pobre de ti: não tiveste nenhuma;
ou tiveste apenas essa
que te roía o coração,
fiel às palavras da tribo.

Andaste por muito lado a ver se o mundo
era maior do que tu – concluíste que não.
Tiveste mulher e filhos portuguesmente
repartidos pela terra,
e alguns amigos,
entre os quais me conto.
E se conta o vento.

Agosto, 78
In: Homenagens e Outros Epitáfios (1974)

Mais sobre Jorge de Sena:
Jorge de Sena nasceu em Lisboa, a 2 de novembro de 1919, e faleceu em Santa Barbara, na Califórnia, a 4 de junho de 1978. É hoje considerado um dos grandes poetas de língua portuguesa e uma das figuras centrais da cultura do nosso século XX. Viveu no Brasil entre 1959 e 1965 e de 1965 até 1978, ano em que morreu, viveu nos Estados Unidos. A obra de Jorge de Sena, vasta e multifacetada, compreende mais de vinte coletâneas de poesia, uma tragédia em verso, uma dezena de peças em um ato, mais de trinta contos, uma novela e um romance, e cerca de quarenta volumes dedicados à crítica e ao ensaio (com destaque para os estudos sobre Camões e Pessoa, poetas com os quais a sua poesia estabelece um importante diálogo), à história e à teoria literária e cultural (os seus trabalhos sobre o Maneirismo foram pioneiros, tal como a sua história da literatura inglesa, e a sua visão comparatista e interdisciplinar das literaturas e das culturas foi extremamente fecunda), ao teatro, ao cinema e às artes plásticas, de Portugal, do Brasil, da Espanha, da Itália, da França, da Alemanha, da Inglaterra ou dos Estados Unidos, sem esquecer as traduções de poesia (duas antologias gerais, da Antiguidade Clássica aos Modernismos do século XX, num total de 225 poetas e 985 poemas, e antologias de Kavafis e Emily Dickinson, dois poetas que deu a conhecer em Portugal), as traduções de ficção (Faulkner, Hemingway, Graham Greene, entre 18 autores), de teatro (com destaque para Eugene O’Neill) e ensaio (Chestov). (Fonte: Instituto Camões)