A Jorge de Sena, no chão da
Califórnia
É por orgulho que já não sobes
as escadas? Terás adivinhado
que não gostei desse ajuste de
contas
que foi a tua agonia?
É só por isso que não vieste
este verão bater-me à porta?
Não sabes já
que entre mim e ti
há só a noite e nunca haverá morte?
Não te faltou orgulho, eu sei;
orgulho de ergueres dia a dia
com mãos trementes
a vida à tua altura
− mas a outra face quem a suspeitou?
Quem amou em ti
o rapazito frágil, inseguro,
a irmã gentil que não tivemos?
Escreveste como o sangue canta:
de-ses-pe-ra-da-men-te,
e mostraste como não é fácil
neste país exíguo ser-se breve.
Talvez o tempo te faltasse
para pesar com mão feliz o ar
onde sobrou
um juvenil ardor até ao fim.
No que nos deixaste há de tudo,
desde o copo de água fresca
ao uivo de lobos acossados.
Há quem prefira ler-te os versos,
outros a prosa, alguns ainda
preferem o que sobre a liberdade
de ser homem
foste deixando por aí
em prosa ou verso, e tangível
brilha
onde antes parecia morta.
Às vezes orgulhavas-te
de ter, em vez de uma, duas pátrias;
pobre de ti: não tiveste nenhuma;
ou tiveste apenas essa
que te roía o coração,
fiel às palavras da tribo.
Andaste por muito lado a ver se o
mundo
era maior do que tu – concluíste que
não.
Tiveste mulher e filhos
portuguesmente
repartidos pela terra,
e alguns amigos,
entre os quais me conto.
E se conta o vento.
Agosto, 78
In: Homenagens
e Outros Epitáfios (1974)
Jorge de
Sena nasceu em Lisboa, a 2 de novembro de 1919, e faleceu em Santa Barbara, na
Califórnia, a 4 de junho de 1978. É hoje considerado um dos grandes poetas de
língua portuguesa e uma das figuras centrais da cultura do nosso século
XX. Viveu no Brasil entre 1959 e 1965 e de 1965 até 1978, ano em que
morreu, viveu nos Estados Unidos. A obra de Jorge de Sena, vasta e
multifacetada, compreende mais de vinte coletâneas de poesia, uma tragédia em
verso, uma dezena de peças em um ato, mais de trinta contos, uma novela e um
romance, e cerca de quarenta volumes dedicados à crítica e ao ensaio (com
destaque para os estudos sobre Camões e Pessoa, poetas com os quais a sua
poesia estabelece um importante diálogo), à história e à teoria literária e
cultural (os seus trabalhos sobre o Maneirismo foram pioneiros, tal como a sua
história da literatura inglesa, e a sua visão comparatista e interdisciplinar
das literaturas e das culturas foi extremamente fecunda), ao teatro, ao cinema
e às artes plásticas, de Portugal, do Brasil, da Espanha, da Itália, da França,
da Alemanha, da Inglaterra ou dos Estados Unidos, sem esquecer as traduções de
poesia (duas antologias gerais, da Antiguidade Clássica aos Modernismos do
século XX, num total de 225 poetas e 985 poemas, e antologias de Kavafis e
Emily Dickinson, dois poetas que deu a conhecer em Portugal), as traduções de
ficção (Faulkner, Hemingway, Graham Greene, entre 18 autores), de teatro (com
destaque para Eugene O’Neill) e ensaio (Chestov). (Fonte: Instituto Camões)