POEMA
POUCO ORIGINAL
DO MEDO
O medo vai ter tudo
pernas
ambulâncias
e o luxo
blindado
de alguns
automóveis
Vai ter olhos onde ninguém os veja
mãozinhas cautelosas
enredos quase inocentes
ouvidos não só nas paredes
mas também no chão
no tecto
no murmúrio
dos esgotos
e talvez
até (cautela!)
ouvidos nos teus ouvidos
O medo vai ter tudo
fantasmas na ópera
sessões contínuas
de espiritismo
milagres
cortejos
frases corajosas
meninas exemplares
seguras casas
de penhor
maliciosas casas
de passe
conferências várias
congressos muitos
óptimos empregos
poemas originais
e poemas
como este
projectos altamente
porcos
heróis
(o medo vai ter heróis!)
costureiras reais
e irreais
operários
(assim assim)
escriturários
(muitos)
intelectuais
(o que se sabe)
a tua voz
talvez
talvez a minha
com certeza a deles
Vai ter capitais
países
suspeitas como toda a gente
muitíssimos amigos
beijos
namorados esverdeados
amantes silenciosos
ardentes
e angustiados
Ah o medo vai
ter tudo
tudo
(Penso
no que o medo
vai ter
e tenho medo
que é justamente
o que
o medo quer)
*
O medo vai ter tudo
quase tudo
e cada
um por
seu caminho
havemos todos
de chegar
quase todos
a ratos
Sim
a ratos
2 comentários:
Profético poema do grande Alexandre O'Neil. Ele não falava só do (seu e nosso) presente, mas também e sobretudo do futuro. Assim que comecei a ler este poema, imediatamente me veio à memória um outro poema do O'Neil sobre o medo, que José Mário Branco musicou e cantou de forma magistral: o poema Perfilados de Medo. A meio desta gravação de José Mário Branco é possível ouvir os primeiros acordes da canção "Mãe Pobre", que Fernando Lopes-Graça compôs para um poema de Carlos de Oliveira:
Terra Pátria serás nossa,
mais este sol que te cobre,
serás nossa,
mãe pobre de gente pobre.
(...)
Hesitei entre o publicado e o outro.
Obrigado pela visita.
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