sábado, 29 de fevereiro de 2020

O TEMPO PERDIDO - Jaques Prévert

O TEMPO PERDIDO

Frente à porta da fábrica
o operário estaca de súbito
o bom tempo puxou-o pela manga
e quando se volta
e vê o Sol
tão vermelho e redondo
sorrindo no céu em brasa
pisca-lhe o olho
com toda a familiaridade:
Olha lá camarada Sol
não achas
que só mesmo um parvalhão
daria um dia tão bonito
a um patrão?

Trad. Manuela Torres
Sextante Editores

Le temps perdu
Devant la porte de l’usine
le travailleur soudain s’arrête
le beau temps l’a tiré par la veste
et comme il se retourne
et regarde le soleil
tout rouge tout rond
souriant dans son ciel de plomb
il cligne de l’oeil
familièrement
Dis donc camarade Soleil
tu ne trouves pas
que c'est plutot con
de donner une journée pareille
à un patron?


quinta-feira, 27 de fevereiro de 2020

Ode à Paz - Natália Correia


Ode à Paz

 Pela verdade, pelo riso, pela luz, pela beleza,
 Pelas aves que voam no olhar de uma criança,
 Pela limpeza do vento, pelos actos de pureza,
 Pela alegria, pelo vinho, pela música, pela dança,
 Pela branda melodia do rumor dos regatos,
 Pelo fulgor do estio, pelo azul do claro dia,
 Pelas flores que esmaltam os campos, pelo sossego dos pastos,
 Pela exactidão das rosas, pela Sabedoria,
 Pelas pérolas que gotejam dos olhos dos amantes,
 Pelos prodígios que são verdadeiros nos sonhos,
 Pelo amor, pela liberdade, pelas coisas radiantes,
 Pelos aromas maduros de suaves outonos,
 Pela futura manhã dos grandes transparentes,
 Pelas entranhas maternas e fecundas da terra,
 Pelas lágrimas das mães a quem nuvens sangrentas
 Arrebatam os filhos para a torpeza da guerra,
 Eu te conjuro ó paz, eu te invoco ó benigna,
 Ó Santa, ó talismã contra a indústria feroz.
 Com tuas mãos que abatem as bandeiras da ira,
 Com o teu esconjuro da bomba e do algoz,
 Abre as portas da História,
 deixa passar a Vida!

in "Inéditos (1985/1990)"

terça-feira, 25 de fevereiro de 2020

O Povo - Pablo Neruda


O Povo


"O povo passeava as suas bandeiras rubras
e estive no meio deles, na pedra que tocavam,
na jornada fragorosa
e nas altas canções da luta.
Vi como iam de conquista em conquista.
Só a sua resistência era caminho
e, isolados, eram como estilhaços
duma estrela, sem boca nem brilho.
Juntos, na unidade feita silêncio,
eram o fogo, o canto indestrutível,
a lenta passagem do homem sobre a terra,
feito profundidades e batalhas.
Eram a dignidade que combatia
o que fora espezinhado, e despertava,
como um sistema, a ordem das vidas
que batiam à porta e se sentavam
com as suas bandeiras na sala central."

Pablo Neruda
in "Canto Geral"

segunda-feira, 24 de fevereiro de 2020

LIBERDADE - Carlos Marighella



LIBERDADE

Não ficarei tão só no campo da arte,
e, ânimo firme, sobranceiro e forte,
tudo farei por ti para exaltar-te,
serenamente, alheio à própria sorte.

Para que eu possa um dia contemplar-te
dominadora, em férvido transporte,
direi que és bela e pura em toda parte,
por maior risco em que essa audácia importe.

Queira-te eu tanto, e de tal modo em suma,
que não exista força humana alguma
que esta paixão embriagadora dome.
E que eu por ti, se torturado for,
possa feliz, indiferente à dor,
morrer sorrindo a murmurar teu nome”

São Paulo, Presídio Especial, 1939

domingo, 23 de fevereiro de 2020

METAM O BURRO NA GAIOLA - Joaquim Namorado


METAM O BURRO NA GAIOLA


Metam o burro na gaiola
de doiradas grades
e tratem-no a alpista
se quiserem
- é só um despropósito

Mas esperar dele o trinar
do canário melodioso
é simplesmente tolo