Sobre o significado da décima do número 888 da Fackel*
Depois de fundado o Terceiro Reich,
Só uma breve mensagem chegou do eloquente.
Num poema com dez versos
A voz dele ergueu‑se, para lastimar sem mais
Não ter força bastante.
Quando os horrores atingem certa dimensão,
Os exemplos esgotam‑se.
As malfeitorias multiplicam-se
E os gritos de dor calam‑se.
Saem insolentes os crimes para a rua
E escarnecem alto da descrição.
Ao que está a ser estrangulado
Ficam as palavras presas na garganta.
Espalha‑se o silêncio e, visto de longe,
Semelha assentimento.
O triunfo da força
Parece consumado.
Já só os corpos mutilados
Dão notícia de que ali campearam criminosos
.Sobre as casas arrasadas já só o silêncio
Denuncia o crime.
Terminou pois o combate?
Pode o crime ser esquecido?
Pode enterrar‑se os assassinados e amordaçar‑se as testemunhas?
Pode a injustiça ganhar, mesmo sendo a injustiça?
O crime pode ser esquecido.
Os assassinados podem ser enterrados e as testemunhas, amordaçadas.
A injustiça pode ganhar, mesmo sendo a injustiça.
A opressão senta‑se à mesa e começa a servir-se
Com as mãos ensanguentadas.
Mas os que carregam com a comida
Não esquecem o peso dos pães; e a fome atormenta-os
Ainda quando a palavra fome está proibida.
Quem disse fome foi abatido.
Quem gritou opressão foi amordaçado.
Mas os que pagam os juros não esquecem a usura.
Mas os oprimidos não esquecem o pé que lhes pisa o pescoço.
A violência não atingiu ainda o ponto máximo
E já começa de novo a resistência.
Quando o eloquente pediu desculpa
Por a voz lhe falhar,
O silêncio apresentou‑se ante o juiz,
Tirou o lenço do rosto
E deu‑se a conhecer como testemunha.
Trad. António Sousa Ribeiro
*Karl Kraus Die Fackel, n.º 888, outubro de 1933.