quarta-feira, 30 de setembro de 2020

Sobre o significado da décima do número 888 da Fackel - BERTOLT BRECHT

Sobre o significado da décima do número 888 da Fackel*

 

Depois de fundado o Terceiro Reich,

Só uma breve mensagem chegou do eloquente.

Num poema com dez versos

A voz dele ergueu‑se, para lastimar sem mais

Não ter força bastante.

 

Quando os horrores atingem certa dimensão,

Os exemplos esgotam‑se.

As malfeitorias multiplicam-se

E os gritos de dor calam‑se.

Saem insolentes os crimes para a rua

E escarnecem alto da descrição.

 

Ao que está a ser estrangulado

Ficam as palavras presas na garganta.

Espalha‑se o silêncio e, visto de longe,

Semelha assentimento.

O triunfo da força

Parece consumado.

 

Já só os corpos mutilados

Dão notícia de que ali campearam criminosos

.Sobre as casas arrasadas já só o silêncio

Denuncia o crime.

 

Terminou pois o combate?

Pode o crime ser esquecido?

Pode enterrar‑se os assassinados e amordaçar‑se as testemunhas?

Pode a injustiça ganhar, mesmo sendo a injustiça?

O crime pode ser esquecido.

Os assassinados podem ser enterrados e as testemunhas, amordaçadas.

A injustiça pode ganhar, mesmo sendo a injustiça.

A opressão senta‑se à mesa e começa a servir-se

Com as mãos ensanguentadas.

 

Mas os que carregam com a comida

Não esquecem o peso dos pães; e a fome atormenta-os

Ainda quando a palavra fome está proibida.

 

Quem disse fome foi abatido.

Quem gritou opressão foi amordaçado.

Mas os que pagam os juros não esquecem a usura.

Mas os oprimidos não esquecem o pé que lhes pisa o pescoço.

A violência não atingiu ainda o ponto máximo

E já começa de novo a resistência.

 

Quando o eloquente pediu desculpa

Por a voz lhe falhar,

O silêncio apresentou‑se ante o juiz,

Tirou o lenço do rosto

E deu‑se a conhecer como testemunha.

 

BERTOLT BRECHT

 Trad. António Sousa Ribeiro

*Karl Kraus Die Fackel, n.º 888, outubro de 1933.

 

terça-feira, 29 de setembro de 2020

SONETO - Antero de Quental


SONETO

 

A cruz dizia à terra onde assentava,

Ao val florido, ao monte nu e mudo

 “– Que és tu, abismo e jaula, aonde tudo

Vive na dor e em luta cega e brava?

 

Sempre em trabalho, condenada escrava,

Que fazes tu de grande e bom contudo?

Resignada, és só lodo, informe e rudo;

Revoltosa, és só fogo e hórrida lava...

 

Mas a mim não há alta e livre serra

Que me possa igualar! Amor, firmeza,

Sou eu só -sou a paz... tu és a guerra!

 

Sou o espírito, a luz! tu és tristeza,

Ó lodo escuro e vil!...” Porém a terra

Respondeu: - “Cruz, eu sou a Natureza!”

 

Antero de Quental

segunda-feira, 28 de setembro de 2020

SERENATA DE SATÃ ÀS ESTRELAS - Eça de Queirós


SERENATA DE SATÃ ÀS ESTRELAS

 I

 Nas noites triviais e desoladas,

Como vos quero, místicas estrelas!...

Lúcidas, antigas camaradas...

Gotas de luz, no frio ar nevadas,

Pudesse a minha boca inda bebê-las!

 II

Nem vos conheço já. Por onde eu ando!..

Sois vós místicos pregos duma cruz,

 Que Cristo estais no céu crucificando?...

 Quem triste pelo ar vos foi soltando

Profundos, soluçantes ais de luz!

 III

Oh! viagens nas nuvens desmanchadas!...

 Doces serıes do céu entre as estrelas!...

Hoje só ais, ou lágrimas caladas...

Ai! sementes de luz, mal semeadas,

Ave do céu, pudesse eu ir comê-las!

 IV

 Triste, triste loucura, ó flores da cruz,

 Quando eu vos dizia soluçando:

 Afastai-vos ele mim, cardos de luz!...

Pudesse eu ter agora os pés bem nus,

 Inda por entre vós i-los rasgando!...

V

 Hoje estou velho e só e corcovado.

Causa-me espanto a sombra duma estola;

Enche-me o peito um tédio desolado:

E corro o mundo todo, esfomeado,

Aos abutres do céu pedindo esmola.

 VI

 Eu sou Satã o triste, o derrubado!

Mas vós, estrelas, sois o musgo velho

Das paredes do céu desabitado,

 E a poeira que se ergue ao ar calado,

Quando eu bato c'o pé no Evangelho!

 VII

 O céu é cemitério trivial:

Vós sois o pó dos deuses sepultados!

Deuses, magros esboços do ideal!

 Só com rasgar-se a folha dum missal,

Vós caís mortos, hirtos, gangrenado

VIII

 Eu sou expulso, roto, escarnecido,

 Mas a vós já ninguém vos quer as leis.

Ó velho Deus! ó Cristo dolorido!

Lembrai-vos que sois pó enegrecido,

E cedo em negro pó vos torreareis.

 

[Eça de Queirós]