quarta-feira, 12 de junho de 2024

Quando amanheceu ainda não sabia - José Rui Teixeira


Quando amanheceu ainda não sabia

 

Havia uma alegria anódina,

uma alegria de haver palavras

de serem repetidas e manhãs caídas

como chuva de outono

e ser abril ainda,

abril

como degraus de subir o silêncio

e mastigar a fome, degraus de cair

no lugar de haver cansaço

e de ser noite.

 

Quando amanheceu eu já existia

dentro de ti.

E quando soubeste que nas ruas

se dizia a manhã de ser abril,

abriste a porta de sair da noite,

desceste os degraus de repetir

a manhã que se dizia

e foste abril, mãe,

abril ainda.

 

José Rui Teixeira

sábado, 8 de junho de 2024

Portwine - Joaquim Namorado

 

Portwine

O Douro é um rio de vinho
que tem a foz em Liverpool e em Londres
e em Nova-York e no Rio e em Buenos Aires:
quando chega ao mar vai nos navios,
cria seus lodos em garrafeiras velhas,
desemboca nos clubes e nos bars.
O Douro é um rio de barcos
onde remam os barqueiros suas desgraças,
primeiro se afundam em terra as suas vidas
que no rio se afundam as barcaças.
Nas sobremesas finas, as garrafas
assemelham cristais cheios de rubis,
em Cape-Town, em Sidney, em Paris,
tem um sabor generoso e fino
o sangue que dos cais exportamos em barris.
As margens do Douro são penedos
fecundados de sangue e amarguras
onde cava o meu povo as vinhas
como quem abre as próprias sepulturas:
nos entrepostos dos cais, em armazéns,
comerciantes trocam por esterlino
o vinho que é o sangue dos seus corpos,
moeda pobre que são os seus destinos.
Em Londres os lords e em Paris os snobs,
no Cabo e no Rio os fazendeiros ricos
acham no Porto um sabor divino,
mas a nós só nos sabe, só nos sabe,
à tristeza infinita de um destino.
O rio Douro é um rio de sangue,
por onde o sangue do meu povo corre.
Meu povo, liberta-te, liberta-te!,
Liberta-te, meu povo! – ou morre.

Joaquim Namorado


sexta-feira, 7 de junho de 2024

UMA GOTA NO CAUDAL - Carlos Aboim Inglez

UMA GOTA NO CAUDAL

 

Sozinhos, que somos nós?

Gota de água diminuta

sumida da terra enxuta....

Nem a sede de uma boca

pode assim ser saciada,

porque sós não somos nada,

nem fonte de nenhum rio,

nem onda do mar ou espuma,

maré de coisa nenhuma.

Gota a gota a terra bebe.

rompe o ventre e verte um fio,

cresce a fonte e faz-se rio.

Quantas rotas tem o mar?

Quantas vagas a maré?

Quem as conta perde o pé.

Gota a gota. Cada é pouca.

Mas se a vida é una e vária

cada gota é necessária.

Mesmo sós sejamos sempre

uma gota no caudal,

diminuta, fraternal.

 

Carlos Aboim Inglez

 

terça-feira, 4 de junho de 2024

Porque viste chegar - Álvaro Feijó


Porque viste chegar

Porque viste chegar
em carros que custaram
quantias fabulosas
ladies loiras,
signoras encantadoras
e os seus inseparáveis cães de luxo,
porque as viste chegar cheias do pó da estrada
e com ar de quem
teve perto de si o sofrimento,
choraste.
Valeu a pena? Não!
Valia a pena chorar por aqueles
que vinham
a pé.

Álvaro Feijó


segunda-feira, 3 de junho de 2024

Revolução é uma palavra muscular - Rosa Alice Branco

Revolução é uma palavra muscular

 

Não contem os dias caros senhores.

Há coisas mais urgentes do que embalar o tempo em plástico

alveolar. É por aí que as horas fogem à palavra já,

esta palavra urgente até ao ínfimo segundo. Cada bolha

seria um ano mais de ditadura. Não vos dói o coração dos outros?

A boca parada da vida obriga-me a palavras como já e nunca mais.

São palavras de andar, têm um corpo muscular de sim,

músculos de acelerar a revolução enquanto os caros senhores

olham as canetas azuis com que se mata a literatura em nome

de qualquer coisa que não é decerto um livro que julgávamos

irremediavelmente publicado. Caros senhores, com abril a revolução

não teve um fim, teve um início que já tinha começado

antes de estiar as nossas vidas.

Não contem dias inúteis. A matemática habita o já

e a liberdade pode perigar no dedo mindinho, ou num capilar

de desatenção. A palavra do agora-sempre é revolução.

A palavra do aqui é já, um já modelado com alteres,

e ainda assim minúsculo para tanto exercício cardiovascular

sem necessidade de aquecimento.

A letra “J” é uma coluna que marcha à procura da letra “à”

e encontram-se numa fonte de cravos onde as gentes

bebem à porta da cidade morena, atravessada a noite

das prisões. Mas há sempre uma mão alheia a trabalhar na sombra

e melhor do que contarem as horas é vigiarmos nós o sol

para que nasçam sempre cravos, sempre o vermelho insanguíneo

da liberdade. A revolução é a única melodia do amanhecer.

Rosa Alice Branco

 

domingo, 2 de junho de 2024

Abril nos dedos - Renata Correia Botelho

Abril nos dedos


As canções estão tão sozinhas

como nós: amigo, povo, vila morena

são agora memória e urgência

nesta escarpa de jugo simulando probidade.

 

Tudo se perde, nada se transforma, é imenso

e escuro o inverno que tememos aí vir:

ao ódio sucede o ódio sucede o ódio,

a palavra mais solitária do mundo.

 

Não nos peçam que saibamos respirar

se o lodo nos tapar o coração. Á cautela,

guardemos um bolso de trevos, abril nos dedos

e um grito de atalaia para serrar a noite.

 

Renata Correia Botelho