sábado, 29 de junho de 2024

Zeca Afonso - O Que Faz Falta!!!

 

O Que Faz Falta

 

Quando a corja topa da janela
O que faz falta
Quando o pão que comes sabe a merda
O que faz falta

O que faz falta é avisar a malta
O que faz falta
O que faz falta é avisar a malta
O que faz falta

Quando nunca a noite foi dormida
O que faz falta
Quando a raiva nunca foi vencida
O que faz falta

O que faz falta é animar a malta
O que faz falta
O que faz falta é acordar a malta
O que faz falta

Quando nunca a infância teve infância
O que faz falta
Quando sabes que vai haver dança
O que faz falta

O que faz falta é animar a malta
O que faz falta
O que faz falta é empurrar a malta
O que faz falta

Quando um cão te morde a canela
O que faz falta
Quando a esquina há sempre uma cabeça
O que faz falta

O que faz falta é animar a malta
O que faz falta
O que faz falta é empurrar a malta
O que faz falta

Quando um homem dorme na valeta
O que faz falta
Quando dizem que isto é tudo treta
O que faz falta

O que faz falta é agitar a malta
O que faz falta
O que faz falta é libertar a malta
O que faz falta

Se o patrão não vai com duas loas
O que faz falta
Se o fascista conspira na sombra
O que faz falta

O que faz falta é avisar a malta
O que faz falta
O que faz falta é dar poder a malta
O que faz falta

G
M
T
Y
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sexta-feira, 28 de junho de 2024

Se... - Alexandre O’Neill

 

Se...

Se é possível conservar a juventude
Respirando abraçado a um marco de correio;
Se a dentadura postiça se voltou contra a pobre senhora e a mordeu
Deixando-a em estado grave;
Se ao descer do avião a Duquesa do Quente
Pôs marfim a sorrir;
Se o Baú-Cheio tem acções nas minas de esterco;
Se na América um jovem de cem anos
Veio de longe ver o Presidente
A cavalo na mãe;
Se um bode recebe o próprio peso em aspirina
E a oferece aos hospitais do seu país;
Se o engenheiro sempre não era engenheiro
E a rapariga ficou com uma engenhoca nos braços;
Se reentrante, protuberante, perturbante,
Lola domina ainda os portugueses;
Se o Jorge (o «ponto» do Jorge!) tentou beber naquela noite
O presunto de Chaves por uma palhinha
E o Eduardo não lhe ficou atrás
Ao sair com a lagosta pela trela;
Se «ninguém me ama porque tenho mau hálito
E reviro os olhos como uma parva»;
Se Mimi Travessuras já não vem a Lisboa
Cantar com o Alberto...

    ...Acaso o nosso destino, tac!, vai mudar?

Alexandre O’Neill

1958

 

terça-feira, 25 de junho de 2024

UM PENSAMENTO ME PERTURBA - Sandor Petöfi


UM PENSAMENTO ME PERTURBA

Um Pensamento me perturba e faz sofrer:

Na cama entre lençóis morrer!

Lentamente, como flor murchando,

Em si dentro secreto insecto ruminando;

Lentamente minha vida como vela a encurtar

Num canto de quarto vazio morrendo a se apagar!…

Deus, Deus meu, não me deis tal morte!

Não! meu Deus, não tal morte!

Faz-me como árvore pelo raio fulminada

Ou, no temporal, pelos ventos desenraizada…

Ou rocha que terramoto dos altos faz rolar

Tremendo céus e terra pelo seu caminhar… –

Quando todo o escravizado povo, seu jugo odiando

Se vai do combate aos campos lançando,

Os rostos, quais rubras bandeiras, já enrubescidos,

E em tais pendões os gritos de combate escritos.

“O mundo libertar!” –

Tal grito a ressoar

De leste a oeste trovejando,

E contra o povo a tirania esbravejando –

Lá quero tombar, lá!

No campo de batalha, lá!

Lá, do meu coração que jorre o sangue

E as últimas palavras brotem de minha boca exangue:

Lá, engolidas elas sejam pelo aço a tilintar,

Pelo som das trombetas, canhões a troar

Lá, meu mortal corpo atravessando,

Corcéis passem relinchando,

Pela final vitória lograda ficando

Espezinhado, lá, meus ossos espalhados:

Se hão-de vir os funerais esperados,

Músicas lentas e solenes entoadas

Drapejando as bandeiras enlutadas –

E, heróis, da vala comum irão ao fundo

Mortos por ti, do mundo Santa liberdade!

 Sandor Petöfi.

(Pest, Dezembro 1846)

(traduzido por José Blanc de Portugal)

domingo, 23 de junho de 2024

Fala do velho do restelo ao astronauta - José Saramago

Fala do velho do restelo ao astronauta

Aqui, na Terra, a fome continua,

A miséria, o luto, e outra vez a fome.

Acendemos cigarros em fogos de napalme 
E dizemos amor sem saber o que seja.  
Mas fizemos de ti a prova da riqueza,
E também da pobreza, e da fome outra vez.
E pusemos em ti sei bem que desejo 
De mais alto que nós, e melhor e mais puro.

No jornal, de olhos tensos, soletramos 
As vertigens do espaço e maravilhas:
Oceanos salgados que circundam 
Ilhas mortas de sede, onde não chove.

Mas o mundo, astronauta, é boa mesa 
Onde come, brincando, a fome,
a fome, astronauta, a fome,
E são brinquedos as bombas de napalme.

José Saramago

 

quarta-feira, 12 de junho de 2024

Quando amanheceu ainda não sabia - José Rui Teixeira


Quando amanheceu ainda não sabia

 

Havia uma alegria anódina,

uma alegria de haver palavras

de serem repetidas e manhãs caídas

como chuva de outono

e ser abril ainda,

abril

como degraus de subir o silêncio

e mastigar a fome, degraus de cair

no lugar de haver cansaço

e de ser noite.

 

Quando amanheceu eu já existia

dentro de ti.

E quando soubeste que nas ruas

se dizia a manhã de ser abril,

abriste a porta de sair da noite,

desceste os degraus de repetir

a manhã que se dizia

e foste abril, mãe,

abril ainda.

 

José Rui Teixeira

sábado, 8 de junho de 2024

Portwine - Joaquim Namorado

 

Portwine

O Douro é um rio de vinho
que tem a foz em Liverpool e em Londres
e em Nova-York e no Rio e em Buenos Aires:
quando chega ao mar vai nos navios,
cria seus lodos em garrafeiras velhas,
desemboca nos clubes e nos bars.
O Douro é um rio de barcos
onde remam os barqueiros suas desgraças,
primeiro se afundam em terra as suas vidas
que no rio se afundam as barcaças.
Nas sobremesas finas, as garrafas
assemelham cristais cheios de rubis,
em Cape-Town, em Sidney, em Paris,
tem um sabor generoso e fino
o sangue que dos cais exportamos em barris.
As margens do Douro são penedos
fecundados de sangue e amarguras
onde cava o meu povo as vinhas
como quem abre as próprias sepulturas:
nos entrepostos dos cais, em armazéns,
comerciantes trocam por esterlino
o vinho que é o sangue dos seus corpos,
moeda pobre que são os seus destinos.
Em Londres os lords e em Paris os snobs,
no Cabo e no Rio os fazendeiros ricos
acham no Porto um sabor divino,
mas a nós só nos sabe, só nos sabe,
à tristeza infinita de um destino.
O rio Douro é um rio de sangue,
por onde o sangue do meu povo corre.
Meu povo, liberta-te, liberta-te!,
Liberta-te, meu povo! – ou morre.

Joaquim Namorado


sexta-feira, 7 de junho de 2024

UMA GOTA NO CAUDAL - Carlos Aboim Inglez

UMA GOTA NO CAUDAL

 

Sozinhos, que somos nós?

Gota de água diminuta

sumida da terra enxuta....

Nem a sede de uma boca

pode assim ser saciada,

porque sós não somos nada,

nem fonte de nenhum rio,

nem onda do mar ou espuma,

maré de coisa nenhuma.

Gota a gota a terra bebe.

rompe o ventre e verte um fio,

cresce a fonte e faz-se rio.

Quantas rotas tem o mar?

Quantas vagas a maré?

Quem as conta perde o pé.

Gota a gota. Cada é pouca.

Mas se a vida é una e vária

cada gota é necessária.

Mesmo sós sejamos sempre

uma gota no caudal,

diminuta, fraternal.

 

Carlos Aboim Inglez

 

terça-feira, 4 de junho de 2024

Porque viste chegar - Álvaro Feijó


Porque viste chegar

Porque viste chegar
em carros que custaram
quantias fabulosas
ladies loiras,
signoras encantadoras
e os seus inseparáveis cães de luxo,
porque as viste chegar cheias do pó da estrada
e com ar de quem
teve perto de si o sofrimento,
choraste.
Valeu a pena? Não!
Valia a pena chorar por aqueles
que vinham
a pé.

Álvaro Feijó


segunda-feira, 3 de junho de 2024

Revolução é uma palavra muscular - Rosa Alice Branco

Revolução é uma palavra muscular

 

Não contem os dias caros senhores.

Há coisas mais urgentes do que embalar o tempo em plástico

alveolar. É por aí que as horas fogem à palavra já,

esta palavra urgente até ao ínfimo segundo. Cada bolha

seria um ano mais de ditadura. Não vos dói o coração dos outros?

A boca parada da vida obriga-me a palavras como já e nunca mais.

São palavras de andar, têm um corpo muscular de sim,

músculos de acelerar a revolução enquanto os caros senhores

olham as canetas azuis com que se mata a literatura em nome

de qualquer coisa que não é decerto um livro que julgávamos

irremediavelmente publicado. Caros senhores, com abril a revolução

não teve um fim, teve um início que já tinha começado

antes de estiar as nossas vidas.

Não contem dias inúteis. A matemática habita o já

e a liberdade pode perigar no dedo mindinho, ou num capilar

de desatenção. A palavra do agora-sempre é revolução.

A palavra do aqui é já, um já modelado com alteres,

e ainda assim minúsculo para tanto exercício cardiovascular

sem necessidade de aquecimento.

A letra “J” é uma coluna que marcha à procura da letra “à”

e encontram-se numa fonte de cravos onde as gentes

bebem à porta da cidade morena, atravessada a noite

das prisões. Mas há sempre uma mão alheia a trabalhar na sombra

e melhor do que contarem as horas é vigiarmos nós o sol

para que nasçam sempre cravos, sempre o vermelho insanguíneo

da liberdade. A revolução é a única melodia do amanhecer.

Rosa Alice Branco