quinta-feira, 29 de agosto de 2024

REGRAS PARA EVITAR QUALQUER CRISE DE NERVOS - Ricardo Marques

 

REGRAS PARA EVITAR QUALQUER CRISE DE NERVOS

É preciso lutar contra a folha de cálculo que elimina, que despede
é preciso trabalhar contra aquilo que nos põe sem trabalho
é preciso saudar a poesia, tirá-la da torre e cantá-la
é preciso abandonar o que nos aprisiona futilmente
é preciso montar a tenda sobre as possibilidades
é preciso libertar a liberdade com que se nasceu
é preciso lutar contra o medo, com ou sem ele
é preciso vigiar de perto o que se conquista
é preciso conquistar o lugar que nos cabe
é preciso rejeitar frases postas na boca
é preciso deixar de ser um número
é preciso fugir de rajada à rajada
é preciso mentir só à mentira

é preciso questionar
é preciso dizer não
é preciso duvidar

e amar - verdadeiramente.

Ricardo Marques

 

terça-feira, 27 de agosto de 2024

Voltaire, poema terramoto Lisboa 1755

“ Ó céu, socorre-me! Ó céu, tenha piedade da miséria humana!”

O coordenador de sismos

e

Um poema sobre o desastre em Lisboa 1755 – Voltaire

Ó infelizes mortais, ó terra deplorável
Ó ajuntamento assustador de seres humanos! Eterna diversão de inúteis dores! Filósofos alienados que proclamam:“tudo vai bem”. Venham contemplar essas ruínas horrendas esses destroços, esses farrapos, essas cinzas malditas, essas mulheres e essas crianças amontoadas sob mármores partidos, seus membros espalhados;
Cem mil desafortunados que a terra devora, que sangrando, dilacerados, e ainda palpitando enterrados sob seus tetos, sucumbem sem socorro, no horror de tormentas findando seus dias!
Diante dos gritos de suas vozes moribundas, do horror de suas cinzas ainda crepitantes, vocês dirão;  “é a consequência de leis eternas que um Deus livre e bom resolveu aplicar?!”
Vocês dirão, vendo esse amontoado de vítimas: “Deus vingou-se,e a morte deles é o preço de seus crimes?!”
Que crime, que falta cometeram essas crianças esmagadas e sangrentas sobre o seio materno? Lisboa, que não mais existe, teria mais vícios que Londres, que Paris, submersas em delícias?
Lisboa está destruída e dança-se em Paris.
Espectadores tranquilos, intrépidos espíritos, contemplando a desgraça desses moribundos, vocês procuram – em paz – as causas do desastre:
mas quando sentem os golpes dos fados inimigos, tornam-se mais humanos e choram como nós. creiam-me: quando a terra abre seus abismos, meu lamento é inocência e meu grito é verdade sempre cercados pelas crueldades do acaso, pelo furor dos malvados, pelas armadilhas da morte experimentado o abalo de todos elementos, companheiros de nossos males, permitam lastimá-los.
É o orgulho, dizem vocês, o orgulho sedicioso, que almeja que indo mal, nós possamos ser melhores. Vão interrogar as margens do tejo;
Escavem nos destroços dessa ruína sangrenta;
Perguntem aos moribundos nesse átimo de espanto se é o orgulho que grita “ Ó céu, socorre-me! Ó céu, tenha piedade da miséria humana!”
“Tudo vai bem – dizem vocês – e tudo é necessário”.
Por acaso o universo, sem esse abismo, infernal, sem submergir Lisboa, estava sendo pior?

– Voltaire foi escritor, ensaísta, deísta e filósofo iluminista francês.

 

segunda-feira, 26 de agosto de 2024

Um poema de Canção Errada - Antonio Gamoneda

 

Um poema de Canção Errada

Atravessas-te a cidade lentamente.

Pela primeira vez, não vais trabalhar

nem para comprar um medicamento ou entregar uma carta:

sais-te para a rua e estás na noite.

 

Desta vez tens sorte:

                                     a noite inteira é tua e envolve-te

e sentes-te como se fosses ao encontro da tua mãe e pensas

que talvez seja bom existir sob as estrelas.

 

Avanças na obscuridade e vais sabendo que também é bom andar pelas ruas e escutar os passos

e sentir a noite dos que já dormem

e entendê-los como um único ser,

como se descansassem dos mesmos cansaços

todos no mesmo sonho.

 

E avanças mais.

E agora vês

a pobreza insone, vês o frio

branco e carnal, e, finalmente, sentes

que o teu coração pesa muito,

demasiado.

E voltas.

 Antonio Gamoneda


Un poema de Cancion errónea

Has cruzado despacio la ciudade.

Por una vez, tú no vas a trabajar

ni a comprar una medicina ni a entregar una carta:

has salido a la calle para estar en la noche.

 

Tienes suerte esta vez:

                                     toda la noche es tuya y te envulve

y tu te sientes como si fueras a reunirte com tu madre y [piensas

que quizá es bueno existir debajo de las estrelas.

 

Avanzas en la oscuridade y vas sabiendo que también es [bueno ir por las calles y escuchar tus pasos

y sentir la noche de los que ya dormen

y comprenderlos como a un solo ser,

como si descansasen des mismo cansancio

todos en el mismo sueño.

 

Pero avanzas más.

Ahora ves

la pobreza insomne, ves el frio

blanco y carnal, y, finalmente, sientes

que pesa mucho, demasiado,

tu corazón.

 

Y retornas.

Antonio Gamoneda

terça-feira, 20 de agosto de 2024

O discurso-poema d' A Garota Não, nos Globos de Ouro da SIC

O discurso-poema d' A Garota Não, nos Globos de Ouro da SIC

Vivemos o tempo dos Budas, das flores de plástico e das cómodas douradas
E rimos muito alto, por cima da música alta das esplanadas
Vivemos o tempo da kombucha, do coaching, das soft skills e da gratidão
Saibamos agradecer aos bancos os juros que nos cobram na habitação
Vivemos o tempo mais corrido de sempre
Das metas, dos objetivos, do ‘nem que me esfarrape’
Não há esforço que não valha a pena, seremos todos Luft, Tap
Vivemos tempo de maioria absoluta, de posso e mando, de meritocracia
O mérito mede-se a partir dos dentes, das notas do colégio ou da demagogia?
Obrigada por esta oportunidade, um globo de ouro nas mãos de um ser tão falho
Há quem tenha muita sorte
A sorte, a mim, tem-me dado muito trabalho"

 

Cátia Oliveira

quinta-feira, 15 de agosto de 2024

"O mundo que te ofereço, amiga" - Jorge Rebelo

Entrevista - Jorge Rebelo

"O mundo que te ofereço, amiga"

O mundo que te ofereço, amiga,
tem a beleza de um sonho construído.

Aqui os homens são crentes -
não em deuses e outras coisas sem sentido
mas em verdades puras e belas,
tão belas e tão universais,
que eles aceitam
morrer
para que elas vivam.

É esta crença, são estas verdades
que tenho
para te ofertar.

Aqui a ternura não nasce
nas alcovas.
É uma ternura rude, violenta, amarga
nascida na dureza áspera da luta
em caminhadas longas
em dias de espera.

É esta ternura rude e amarga
que tenho
para te ofertar.

Aqui não crescem rosas coloridas.
O peso das botas apagou as flores pelos caminhos.
Aqui cresce milho, mandioca
que o esforço dos homens fez nascer
na previsão da fome.

É esta ausência de rosas,
este esforço, esta fome
que tenho
para te ofertar.

Aqui as crianças não envelhecem,
o seu riso é eterno,
brincam com o sol, com o vento,
com a chuva e os gafanhotos,
com espingardas verdadeiras,
com pedaços de granadas.

É este riso eterno de criança, este sol,
estas espingardas verdadeiras
(com as quais também brinquei)
que eu tenho
para te ofertar.

O mundo em que combato
tem a beleza de um sonho construído.

É este combate, amiga, este sonho
que tenho
para te ofertar.

Jorge Rebelo

(Este poema foi escrito durante a guerra de libertação.)

 

quarta-feira, 7 de agosto de 2024

HIROXIMA - Adão Cruz

 6 e 9 de agosto de 1945, os Estados Unidos fizeram uso, pela primeira vez na história da humanidade, de armas atómicas contra as cidades japonesas de Hiroshima e Nagasaki.

HIROXIMA 

Nos limites da razão

onde os homens produzem monstros

todos nos sentimos escombros

do maior terrorismo da História

humana.

Nasceu a manhã mais cruel da mais

inocente madrugada

a manhã mais negra do que a noite

do absurdo.

O inferno rasgou o sol e a lua

os rostos e os braços

arrancou as árvores

secou os rios e as fontes

enchendo a cidade de sangue e

corpos em pedaços.

Um mar de gente ... no corpo nu da

solidão

gente só... no ventre da multidão

olhos vidrados de lágrimas e pânico

correndo... fugindo...

para onde... para o nada...

para o abismo da escuridão

sobre restos de sonhos e pedaços de

vida

espalhados pelo chão

onde a dor fincou as garras

abafando os gritos em catedrais de

cinzas.

O fim de tudo entrou pelas portas e

janelas

e comeu tudo...

comeu as casas que caíram

as mãos que deixaram de brincar

comeu os olhos que deixaram de

olhar

e as bocas que deixaram de respirar.

Tudo era dentro e tudo era fora

na amplidão do desespero

não havia mães nem filhos nas

entranhas da aflição

não havia rumo nem caminho

no deserto infindo da maldição.

Tudo se fez pó

não ficou pedra sobre pedra

e nem pedras havia no chão

já o chão não era chão

mas o fundo abismo de uma cratera

onde tudo era estendal de morte

sem porta de entrada sem porta de

saída

sem tempo sem norte sem vida

sem ruas sem movimento

sem fímbria de céu ou de mar.

O nada entrou no coração

que deixou de bater no peito de

muitos mil

ao peso de cinquenta quilos de

urânio

e toneladas de glória americana

erguendo até ao cume da barbárie

a bandeira mais cruel da natureza

humana.

Uma fria luz de prata atravessou o

mundo

perfurou a mente e as ideias

em seco lamento de gemido sem

remédio

como latido de cão atirado ao vento.

E o mundo dormiu suavemente...

e ainda hoje não acordou.

Entre milhares de bombas e

estrondosos hinos

o mundo de olhos cegos e ouvidos

moucos

ainda dorme...

nada mais ouvindo que o silêncio dos

assassinos.

Adão Cruz

Médico, poeta e pintor.

Foi médico militar na Guiné quando da Guerra Colonial


terça-feira, 6 de agosto de 2024

Ney Matogrosso - Rosa De Hiroshima de Vinícius de Moraes

 
 

Rosa de Hiroshima

Pensem nas crianças mudas, telepáticas
Pensem nas meninas cegas, inexatas
Pensem nas mulheres, rotas alteradas
Pensem nas feridas como rosas cálidas

Mas, oh, não se esqueçam da rosa, da rosa
Da rosa de Hiroshima, a rosa hereditária
A rosa radioativa, estúpida e inválida
A rosa com cirrose, a anti-rosa atômica
Sem cor, sem perfume, sem rosa, sem nada

Vinícius de Moraes

06.08.1945 – Hiroshima: os relógios pararam às 8:15