quarta-feira, 11 de setembro de 2024

SALVADOR ALLENDE, por PABLO NERUDA

 

   SALVADOR ALLENDE, por PABLO NERUDA

Salvador Allende e Pablo Neruda

Salvador Allende, por Pablo Neruda

(último capítulo das memórias de Pablo Neruda, confesso que vivi)

Meu povo tem sido o mais atraiçoado deste tempo. Dos desertos do salitre, das minas submarinas do carvão, das alturas terríveis onde jaz o cobre e onde as mãos de meu povo os extraem com trabalho desumano, surgiu um movimento libertador de importância grandiosa. Esse movimento levou à presidência do Chile um homem chamado Salvador Allende para que realizasse reformas e medidas de justiça inadiáveis, para que resgatasse nossas riquezas nacionais das garras estrangeiras.

Onde estive, nos países mais longínquos, os povos admiraram o Presidente Allende e elogiaram o extraordinário pluralismo de nosso governo. Jamais na história da sede das Nações Unidas em Nova Iorque se escutou uma ovação como a que os representantes de todo o mundo proporcionaram ao presidente do Chile.

Aqui no Chile estava se construindo, entre imensas dificuldades, uma sociedade verdadeiramente justa, erguida sobre a base de nossa soberania, de nosso orgulho nacional, do heroísmo dos melhores habitantes do Chile. Do nosso lado, do lado da revolução chilena, estavam a constituição e a lei, a democracia e a esperança.

Do outro lado não faltava nada. Tinham arlequins e polichinelos, palhaços a granel, terroristas de pistola e prisão, monges falsos e militares degradados. Uns e outros davam voltas no carrossel do despeito. O fascista Jarpa ia de mãos dadas com seus sobrinhos de “Pátria e Liberdade”, dispostos a quebrar a cabeça e a alma de tudo quanto existe, com o propósito de recuperar o grande latifúndio que eles chamavam Chile. Junto com eles, para amenizar a farandula, dançava um grande banqueiro e dançarino, um tanto manchado de sangue. Era o campeão de rumba González Videla, que rumbeando entregou faz tempo seu partido aos inimigos do povo. Agora era Frei quem oferecia seu partido democrata-cristão aos mesmos inimigos do povo, dançando segundo a música deles, dançando além disso com o ex-coronel Viaux, de cuja canalhice foi cúmplice. Estes eram os principais artistas da comédia. Tinham preparados os víveres do monopólio, os “miguelitos”, os garrotes e as mesmas balas que há pouco tempo feriram de morte nosso povo em Iquique, em Ranquín, em Salvador, em Puerto Montt, em José María Caro, em Frutillar, em Puente Alto e em tantos outros lugares. Os assassinos de Hernán Mery dançavam com os que deveriam defender sua memória. Dançavam com naturalidade, hipocritamente. Sentiam-se ofendidos quando lhes reprovavam esses “pequenos detalhes”.

O Chile tem uma longa história civil com poucas revoluções e muitos governos estáveis, conservadores e medíocres. Muitos presidentes menores e somente dois grandes presidentes: Balmaceda e Allende. É curioso que os dois provinham do mesmo meio, da burguesia endinheirada, que aqui chamamos aristocracia. Como homens de princípios, empenhados em engrandecer um país diminuído pela oligarquia medíocre, os dois foram conduzidos à morte da mesma maneira. Balmaceda foi levado ao suicídio por resistir na entrega da riqueza salitreira às companhias estrangeiras.

Allende foi assassinado por ter nacionalizado a outra riqueza do subsolo chileno, o cobre. Em ambos os casos, a oligarquia chilena organizou revoluções sangrentas. Em ambos os casos os militares fizeram o papel de matilha. As companhias inglesas no período de Balmaceda e as norte-americanas no período de Allende favoreceram estes movimentos militares.

 Em ambos os casos, as casas dos presidentes foram saqueadas por ordem de nossos distinguidos “aristocratas”. Os salões de Ralmaceda foram destruídos a golpes de machado. A casa de Allende, graças ao progresso, foi bombardeada do ar por nossos heróicos aviadores.

No entanto, estes dois homens foram muito diferentes. Balmaceda foi um orador cativante. Tinha um temperamento imperioso que o aproximava cada vez mais da autoridade unipessoal. Estava seguro da elevação de seus propósitos. A todo instante se viu rodeado de inimigos. Sua superioridade sobre o meio em que vivia era tão grande e tão grande sua solidão que acabou por se reconcentrar em si mesmo. O povo que devia ajudá-lo não existia como força, quer dizer, não estava organizado. O presidente estava condenado a se conduzir como um iluminado, como um sonhador: seu sonho de grandeza ficou no sonho. Depois de seu assassinato, os vorazes mercadores estrangeiros e os parlamentares criollos se apossaram do salitre. Para os estrangeiros, a propriedade e as concessões; para os criollos, os subornos. Recebidos os trinta dinheiros, tudo voltou à normalidade. O sangue de uns quantos milhares de homens do povo secou logo nos campos de batalha. Os operários mais explorados do mundo, os das regiões do Norte do Chile, não cessaram de produzir imensas quantidades de libras esterlinas para a City de Londres.

Allende nunca foi um grande orador. E como estadista era um governante que fazia consultas antes de tomar qualquer medida. Foi o antiditador, o democrata por princípio até nos menores detalhes. Coube-lhe um país que já não era a nação inexperiente de Balmaceda; encontrou uma classe operária poderosa que sabia o que estava fazendo. Allende era um dirigente coletivo; um homem que, sem sair das classes populares, era um produto da luta dessas classes contra o imobilismo e a corrupção de seus exploradores. Por tais motivos e razões, a obra que Allende realizou em tão curto tempo é superior à de Balmaceda; mais ainda, é a mais importante da história do Chile. Só a nacionalização do cobre foi uma empresa titânica. E a destruição dos monopólios, a profunda reforma agrária e muitos objetivos mais que foram cumpridos sob seu governo de essência coletiva.

As obras e os feitos de Allende, de indelével valor nacional, enfureceram os inimigos de nossa liberação. O simbolismo trágico desta crise se revela no bombardeio do palácio do governo. A gente evoca a blitzkrieg, da aviação nazista contra indefesas cidades estrangeiras, espanholas, inglesas, russas. Agora sucedia o mesmo crime no Chile; pilotos chilenos atacavam em piquê o palácio que durante dois séculos foi o centro da vida civil do país.

Escrevo estas rápidas linhas para minhas memórias há apenas três dias dos fatos inqualificáveis que levaram à morte meu grande companheiro, o Presidente Allende (nota ditirâmbica: assassinado após um golpe militar em 11 de setembro de 1973). Seu assassinato foi mantido em silêncio, foi enterrado secretamente, permitiram somente à sua viúva acompanhar o imortal cadáver. A versão dos agressores é que acharam seu corpo inerte, com mostras visíveis de suicídio. A versão que foi publicada no estrangeiro é diferente. Após o bombardeio aéreo, vieram os tanques, muitos tanques, para lutar intrepidamente contra um só homem: o Presidente da República do Chile, Salvador Allende, que os esperava em seu gabinete, sem outra companhia a não ser seu grande coração envolto em fumaça e chamas.

Não podiam perder uma ocasião tão boa. Era preciso metralhá-lo porque jamais renunciaria a seu cargo. O corpo foi enterrado secretamente num lugar qualquer. O cadáver que foi para a sepultura acompanhado por uma única mulher, que levava em si mesma toda a dor do mundo, a gloriosa figura morta ia crivada e despedaçada pelas balas das metralhadoras dos soldados do Chile, que outra vez tinham atraiçoado o Chile.

Pablo Neruda, tradução de Olga Savary.

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