quinta-feira, 13 de julho de 2023

Rui Lage - O País à porta

 

O País à porta

 

Se pudesses, O'Neill, ver hoje o teu país, 

(ou tu, Assis Pacheco, filho pródigo

destes quintais floridos)

velho de oito séculos e pouco mais velho

desde que o deixaste,

país que secretamente não vota

para não se maçar

enquanto furta com arte as gaiolas vizinhas

a cantar nas paredes caiadas,

país com mais que fazer

(futebol para ver

e mato para queimar);

 

se pudesses vê-lo agora

não levarias a peito,

mas confirmarias, estou certo, 

que tem defeito de nascença 

ou de fabrico,

mais valendo, por isso, 

como em vida tua valeu,

deitar por terra a lança do ódio,

fechar a navalha do tédio,

sacudir o ombro da solidão

e rir sonoramente de tudo, 

talvez não tanto à porta da pastelaria

como, hoje em dia, à porta dos chineses,

 

mas rir sonoramente de tudo, dizia, 

- de ti mesmo,

sobretudo. 


Rui Lage

 

quarta-feira, 12 de julho de 2023

AMIZADE - Eduardo Alves da Costa

 

AMIZADE

Ninguém abandona um carro,
Nos aborrecemos ao perder
um livro, um guarda-chuva.
Ficamos desolados com a morte
de nosso cão.

Contudo somos capazes
de deixar uma amizade
sincera, preciosa,
escorrer pelo ralo.

Eduardo Alves da Costa

segunda-feira, 10 de julho de 2023

Nós poetas - Carlos Loures

 

 Nós poetas 

Dizemos Povo, cantamos Povo

sem que as nossas vozes edifiquem

por vezes as traves da palavra

as sibilinas trevas do seu som.

A que pedra arrancámos a sua abóbada

de mãos erguidas e crispados gritos?

Em que mesa compartilhámos a sua fome,

em que dorso sofremos o seu cansaço

e em que lenço enxugámos o seu suor?

Em que rosto chorámos as suas lágrimas,

em que peito albergámos a sua dor?

 

Ah companheiros de ofício, nem sempre

ou quase nunca o Povo dos poemas

é aquele que transcorre pelas paisagens

em que habita o desespero e espera a morte.

Bandeira será florindo o nosso verso,

mas povo no poema é coisa rara

que em rosa não cabe a sua sorte.

 CARLOS LOURES

(A Poesia Deve Ser Feita Por Todos, Lisboa, 1970)

sexta-feira, 7 de julho de 2023

Poema No Meu País - Sebastião da Gama

 

Poema No Meu País

No meu país
dardejado de sol e da caca dos gaios
só há estâncias
(de veraneio) na poesia.
Nossos lábios
a um metro e sessenta e tal
do chão amarelecido
dos símbolos
abrem para fora
por dois gomos de frio.
Nossos lábios outonais, digo,
outonais doze meses.
No entanto
à flor da possível
geografia
um frémito cinde
as estações do ano.

Sebastião da Gama

 

terça-feira, 4 de julho de 2023

Tudo em dia - Arnaldo Antunes

"tudo em dia"

vou c o m p r a r uma casa, vou ganhar dinheiro

vou pensar no futuro, vou fazer um seguro

vou ganhar o pão nosso de cada dia

vou por tudo o q u e tenho na garantia

vou ter conta no banco, vou trabalhar no escritório

vou tomar um chope, vou tomar sorvete

vou tomar remédio, que maravilha

vou c a s a r c constituir família

vou a n d a r de táxi, vou deixar o troco

vou p a g a r os impostos, vou por os filhos na escola

vou ser respeitado, vou e n g r a x a r o s a p a t o

vou botar o chinelo, vou sentar na poltrona

vou j a n t a r na melhor c h u r r a s c a r i a

vou pedalar domingo na ciclovia

vou ter conta na mercearia

vou gozar a aposentadoria

vou ter cie, eleitor, reservista, rg

automóvel, tv

crediário, p o u p a n ç a , c a r n ê

tudo em dia, tudo em dia

tudo em dia, tudo em dia

 

Arnaldo Antune