domingo, 30 de setembro de 2012

Eduardo Alves da Costa



NÃO TE RENDAS JAMAIS

Procura acrescentar um côvado
à tua altura. Que o mundo está
à míngua de valores
e um homem de estatura justifica
a existência de um milhão de pigmeus
a navegar na rota previsível
entre a impostura e a mesquinhez
dos filisteus. Ergue-te desse oceano
que dócil se derrama sobre a areia
e busca as profundezas, o tumulto
do sangue a irromper na veia
contra os diques do cinismo
e os rochedos de torpezas
que as nações antepõem a seus rebeldes.
Não te rendas jamais, nunca te entregues,
foge das redes, expande teu destino.
E caso fiques tão só que nem mesmo um cão
venha te lamber a mão,
atira-te contra as escarpas
de tua angústia e explode
em grito, em raiva, em pranto.
Porque desse teu gesto
há de nascer o Espanto.

Eduardo Alves da Costa
no livro “No Caminho com Maiakóvski”

sábado, 29 de setembro de 2012

"nunca se perca a esperança"



 aqui
 
Vilancete Castelhano de Gil Vicente

Por mais que nos doa a vida
nunca se perca a esperança;
a falta de confiança
da morte é conhecida.
Se a lágrima for cumprida
a sorte, sentindo-a bem,
vereis que todo o mal vem
achar remédio na vida.
E pois que outro preço tem
depois do mal a bonança,
nunca se perca a esperança
enquanto a morte não vem.

Carlos de Oliveira

quinta-feira, 27 de setembro de 2012

Guia para candidatos aos infernos



Almeida Faria
 Guia para candidatos aos infernos
II - Candidatos Iracundos
De nós, os iracundos, que sabe quem prospera à custa dos infernos?
Os
profissionais da salvação da alma mentem a nosso respeito.
Diz-se
que o Rei dos Judeus expulsou, irado, os vendilhões do templo.
Excelente exemplo! Sermos filhos da ira será defeito?
quem nos creia indignos de descer aos infernos.
quem nos considere meros proletários do berro.
É
certo que os nossos guinchos são de bicho.
Guinchamos
pelo prazer da pura ira.
Diante da mentira, a nossa irada ira desata a vomitar.
E podemos
até desatar às dentadas de tanta ira acumulada.
Se
não mordermos, espigam-nos picos na testa.
Se
não mordermos, nas nossas caras abrem-se fendas.
Se
não mordermos, espinhos de ferro esguicham-nos das pernas.
Os
mansos detestam descobrir-se nos nossos guinchos e gritos.
Detestam
ver em nós os seus dentes cerrados, os seus olhos vazios.
Detestam
ver em nós o seu pescoço em parafuso, as suas mentes retorcidas.
Não é por sermos humanos que abdicamos do nosso direito ao grito.

terça-feira, 25 de setembro de 2012

À ESPERA DOS BÁRBAROS


Konstantinos Kaváfis


À ESPERA DOS BÁRBAROS

O que esperamos na ágora reunidos?
   
         É que os bárbaros chegam  hoje.

Por que tanta apatia no senado?
Os senadores não legislam  mais?

          É que os bárbaros chegam  hoje.
          Que leis hão de fazer os senadores?
          Os bárbaros que chegam  as farão.

Por que o imperador se ergueu tão cedo
e de coroa solene se assentou
em seu trono, à porta magna da cidade?

            É que os bárbaros chegam  hoje.
            O nosso imperador conta saudar
            o chefe deles. Tem pronto para dar-lhe
            um pergaminho  no qual estão escritos
            muitos nomes e títulos.

Por que hoje os dois cônsules e os pretores
usam  togas de púrpura, bordadas,
e pulseiras com grandes ametistas
e anéis com tais brilhantes e esmeraldas?
Por que hoje empunham bastões tão preciosos,
de ouro e prata finamente cravejados?

              É que os bárbaros chegam  hoje,
              tais coisas os deslumbram.

Por que não vêm os dignos oradores
derramar o seu verbo como sempre?

               É que os bárbaros chegam  hoje
               e aborrecem a rengas, eloquências.
 
Por que subitamente esta inquietude?
(Que seriedade  nas fisionomias!)
Por que tão rápido as ruas se esvaziam
e todos voltam  para casa preocupados?
       
                 Porque é noite, os bárbaros não vêm
                 e gente recém-chegada das fronteiras
                 diz que nãomais bárbaros.

Sem bárbaros o que será de nós?
Ah! eles eram uma solução.


Konstantinos Kaváfis
trad. José Paulo Paes
Editora Nova Fronteira, Rio de Janeiro, 1982
 

segunda-feira, 24 de setembro de 2012

A MERDA

Hans Magnus Enzensberger


a merda

como se ela tivesse culpa de tudo.
vejam como suave e modesta
ela que se senta debaixo de nós!
porquê conspurcarmos então
o seu bom nome
e o emprestamos
ao presidente dos usa,
aos chuis, à guerra
e ao capitalismo?

que efémera ela é,
e aquilo a que damos o seu nome
que duradouro!
ela, a flexível,
anda na nossa boca
e referimo-nos aos exploradores.
ela, que nós esprememos,
terá agora que exprimir ainda
a nossa raiva?

não nos aliviou?
de mole consistência
e singularmente mansa
é de todas as obras do homem
provavelmente a mais pacífica.

que mal é que ela nos fez?

Hans Magnus Enzensberger
(Poemas Políticos)
Tradução de Almeida Faria
Publicações Dom Quixote, 1975
(original de gedichte 1971)

domingo, 23 de setembro de 2012

ACORDAI em Belém


Fernando Lopes Graça – José Gomes Ferreira
 Hino de Resistência no tempo do outro fascismo volta a aquecer a esperança.
 
clicar aqui

Acordai
acordai
homens
que dormis
a embalar a dor
dos silêncios vis
vinde no clamor
das almas viris
arrancar
a flor
que dorme na raiz


Acordai

acordai
raios
e tufões
que
dormis no ar
e nas multidões
vinde incendiar
de astros e canções
as pedras do mar
o mundo e os corações

Acordai

acendei
de almas e de sóis
este
mar sem cais
nem
luz de faróis
e acordai depois
das lutas finais
os nossos heróis
que dormem nos covais

Acordai!



sábado, 22 de setembro de 2012

CHICO BUARQUE - TANTO MAR


Aqui:  Tanto mar


Tanto Mar
(1ª versão - 1975)

Sei que estás em festa, pá
Fico contente
E enquanto estou ausente
Guarda um cravo para mim

Eu queria estar na festa, pá
Com tua gente
E colher pessoalmente
Uma flor do teu jardim

Sei que há léguas a nos separar
Tonto mar, tanto mar
Sei também quanto é preciso, pá
Navegar, navegar

Lá faz primavera, pá
Cá estou doente
Manda urgentemente
Algum cheirinho de alecrim


Tanto Mar
(2ª versão – 1978)

Foi bonita a festa, pá
Fiquei contente
E ainda guardo, renitente
Um velho cravo para mim

Já murcharam tua festa, pá
Mas certamente
Esqueceram uma semente
Nalgum canto do jardim

Sei que há léguas a nos separar
Tanto mar, tanto mar
Sei também quanto é preciso, pá
Navegar, navegar

Canta a primavera, pá
Cá estou carente
Manda novamente
Algum cheirinho de alecrim

Chico Buarque