Isto
de ser o que se não é,
de andar sempre a mentir
(quantas vezes a nós próprios!)
tiranizados,
forçados,
chegando mesmo a esquecer,
por vezes,
que somos bois debaixo de uma canga:
Isto,
juro-vos,
ainda há de acabar.
Isto
de ser o que se não é,
de andar sempre a mentir
(quantas vezes a nós próprios!)
tiranizados,
forçados,
chegando mesmo a esquecer,
por vezes,
que somos bois debaixo de uma canga:
Isto,
juro-vos,
ainda há de acabar.
Even if the
pain of the wound increases
(Mesmo
que a dor da ferida aumente)
A poesia nas celas de Guantánamo
Não há bondade
onde não resplandeça uma claridade,
nem silêncio
onde não ressoe um som.
Desperta o silencioso
- que se mantém dormente.
ilumina a escuridão
que nos criou.
Não há trevas
que a luz não vença,
nem silêncio
que os sons não entoem.
Mas essa calma
que repousa no incerto
escurece em silêncio
a declaração tardia.
Na terra negra
da vida,
Pousio do
desespero,
É que o Poeta
semeia
Poemas de
confiança.
O Poeta é uma
criança
Que devaneia.
Mas todo o
semeador
Semeia contra
o presente.
Semeia como
vidente
A seara do
futuro,
Sem saber se o
chão é duro
E lhe recebe a
semente.
Pelos olhos de três crianças
Vivo este genocídio através do imaginário
de três meninos
O primeiro esconde-se sob os lençóis
Dizendo, querer ser um fantasma
Para que os aviões não o vejam
O segundo dizia, que a queda dos navios de
guerra
Era a voz do polvo no mar
E a terceira, uma menina: queria ser uma
tartaruga
Para esconder
todos
Sob a sua carapaça
Ó tu, mão da
imaginação,
embala o sono
destes meninos,
preserva para eles
todos os sonhos.
Ó tu, mão da
imaginação,
não vás para além
do horror da realidade.
Fidaa Ziyad
Fidaa
Ziyad é um poeta de Gaza. Este poema foi
escrito sob bombardeio em 24 de outubro de 2023, publicado em 25 de novembro e
revisado em 5 de dezembro. Transmitido no Facebook na série de videoclips
intitulada “Isto é Gaza, textos literários”, lidos por Fidaa Allawzi
Je vis ce génocide à travers
l’imaginaire de trois enfants
Le premier se cachait sous les draps
En disant je voudrais être un fantôme
Pour que les avions ne me voient pas
Le deuxième disait, du fracas des navires de guerre
C’est la voix de la pieuvre dans la mer
Et le troisième, une petite fille : Je voudrais être une tortue
Pour cacher tout le monde
Sous ma carapace
Ô toi la main de l’imaginaire
Berce le sommeil de ces petits
Préserve pour eux tous ces rêves
Ô toi la main de l’imaginaire
Ne va pas plus loin que l’horreur du réel
Fidaa Ziyad est poétesse de Gaza.
Ce poème a été écrit sous le bombardement le 24 octobre 2023, publié
le 25 novembre, revu le 5 décembre. Diffusé sur Facebook dans la
série de vidéoclips intitulée « This is Gaza, litterary texts », lu
par Fidaa Allawzi.
ATTRAVERSO
GLI OCCHI DI TRE BAMBINI
Fidaa Ziyad è una poetessa di Gaza. Questa poesia
è stata scritta sotto bombardamento il 24 ottobre 2023, pubblicata il 25
novembre, rivista il 5 dicembre. Trasmesso su Facebook nella serie di videoclip
dal titolo “This is Gaza, testi letterari”, letti da Fidaa Allawzi.
Vivo questo genocidio attraverso l’immaginazione
di tre bambini
Il primo si è nascosto sotto le lenzuola
Dicendo Vorrei essere un fantasma
Perché gli aerei non mi vedano
Il secondo ha detto, dallo schianto delle navi da guerra
È la voce della piovra nel mare
E la terza, una bambina: Vorrei essere una tartaruga
Per nascondere tutti
Sotto il mio guscio
O tu, la mano dell’immaginazione,
culla il sonno di questi piccoli,
preserva per loro tutti questi sogni.
O tu, la mano dell’immaginazione,
non andare oltre l’orrore della realtà.
"Se
disparassem mais a matar, país estava mais na ordem"
declarações
do líder parlamentar do Chega
Um dia de peste e rancor
(poema de urgência de Vicente
Zito Lema
Um dia gritaram de cara al sol
“Viva la morte”
E a luz fez-se escura / como escuro
é o sangue ...
Uma noite escreveram nas paredes
“Viva o cancro”
e a dor foi tão grande / tão espessa
que os corpos ficaram sem alma
Hoje vão a praças / ao obelisco
festejando
com bocas cheias de rancor
para que a Peste (há sempre uma
peste...)
se pegue aos corpos de uma vez por
todas aos
mais velhos
mais fracos
com mais fome
mais nus
Para que a Peste (há sempre uma peste...)
Seja como um rio que transborda
Que não vê / não sente / não perdoa
Tão natural e cruel como a morte...
Un día de peste y rencor
(poema de urgencia de Vicente Zito Lema)
Un día gritaron de cara al
sol
“Viva la muerte”
Y la luz se hizo oscura / como oscura
es la sangre…
Una noche escribieron por los muros
“Viva el cáncer”
y el dolor fue de tanto dolor / de tanta espesura
que los cuerpos quedaron sin alma
Hoy van a unas plazas / al obelisco
en plan de festejo
con bocas alzadas de rencor
para que la Peste (siempre hay una peste…)
se lleve de una buena vez a los cuerpos
más viejos
más débiles
más con hambre
más desnudos
Para que la Peste (siempre hay una peste…)
Sea como un río que se desmadra
Que no mira / no siente / no perdona
Tan natural y cruel como es la muerte…
Vicente Zito Lema
17 de agosto de 2020, día que, humillando el recuerdo de San Martín, y en
perverso uso de la palabra Libertad, el fascismo convocó a celebrar
Lápides
Não sou um velho vencido!
Mesmo à beira da morte
Quero erguer o braço forte
Da razão de ter vivido.
Voz de amor por quanto louvo
Caia-me o coração exangue,
Mas sem traição do meu sangue
Que é a voz do meu povo.
Ao
Ao
Dispersou-se
e
O Apocalipse Árabe
XXXVI
Na escura irritação dos olhos esconde-se uma cobra
Nas expirações de americanos há um império em queda
Nas águas podres dos rios há os palestinos
FORA FORA de suas fronteiras a dor tem no pescoço uma coleira
Nos estames do trigo há insetos vacinados contra o pão
Nos barcos árabes há tubarões tombados de riso
Na barriga do camelo há rodovias cegas
FORA FORA do TEMPO há a esperança em pedaços da primavera
No dilúvio das nossas planícies não há chuvas mas pedras
Etel Adnan
traduções
de Ricardo Domeneck
XXXVI
The Arab
Apocalypse
In the dark irritation of the eyes there is a snake hiding
In the exhalations of Americans there is a crumbling empire
In the foul waters of the rivers there are Palestinians
OUT OUT of its borders pain has a leash on its neck
In the wheat stalks there are insects vaccinated against bread
In the Arabian boats there are sharks shaken with laughter
In the camel’s belly there are blind highways
OUT OUT of TIME there is spring’s shattered hope
In the deluge on our plains there are no rains but stones
– UM BRAMIDO DE RAIVA
Senti um frio arrepiante e um buraco negro nas
entranhas, tão fundo como a silhueta daquele maldito comboio da inglória
velocidade rebentando a dor, direito à morte que está em pé na berma do cais
pela mão de uma criança. O pai, nos braços de um escombro deste mundo sem sol
nem lua, destino bárbaro e cruel da perda total, de mão dada com o filho contra
a majestade de um gélido cadafalso de ferro, parido pela força de um desumano
progresso, contra o qual se esmagam os pobres e desamparados que vivem em contramão.
Meu menino sonâmbulo de olhos negros e pálida
doçura quase luminosa, firme, terna, inocente, confiante na verdade desfeita em
sangue pela mentira das mãos fatalistas de uma sociedade podre.
Podia ser um menino nascido no berço do lado, ao
colo de um pai ou de um avô trabalhador-milionário, desiludido, porque a sua
fortuna não havia atingido o limiar do absurdo, o que não deixava de ser
triste, mas a vida filha da puta, meu menino pobre, nada mais te deu do que um
pai sem nada, sem prendas sem força nem entre-actos que te enxergassem melhor
sorte do que a morte.
O monstruoso comboio entra na tua boca a toda a
brida, o ar louco sai em turbilhão do teu pequenino peito sem eco, a vida
estilhaça-se em ruidoso estrondo e o teu corpo frágil cai em pedaços sobre os
bonecos das tuas meias, no pavoroso silêncio dos teus olhitos redondos.
E o mundo continua como se nada tivesse
acontecido.
Quando vi que eras tu o menino que estava no curto caminho da morte pela mão de um pai que não dominava a fome, e não tinha dinheiro para te comprar uma bola, um pai que não sorria nem cantava para ti porque a alma se perdeu na praça do medo com o sol congelado na boca, senti um bramido de raiva e uma louca vontade de pedir contas a Deus.
Os bárbaros
já Chegaram
Os bárbaros já chegaram e se
tornaram
invisíveis em suas sinecuras,
com suas túnicas rubras, azuis, furta-cores
- chegaram sem resistência.
Chegaram os bárbaros
com sua declamatória fortuita
e sua eloquência gratuita
pregando uma democracia de simulacros
e semelhanças neutralizantes
ocultando as diferenças.
A eles entregaremos nossos
cérebros jubilosos
nossas cabeças decapitadas em bandejas
às hostes recrutadas nos subúrbios sombrios
para amedrontar-nos e sujeitar-nos
ao moralismo mais pedestre e pedante.
Abandona o plano metafísico
e refugia-te no cotidiano mais reles,
vaticina Baudelaire.
Sigamos os exemplos mais
edificantes
da mesmice, os fogos-fátuos da mediocridade
a exemplaridade de almanaque
e da bula de remédios, os redentorismos:
o cinismo dos disfarces e ventriloquias
o endeusamento coreográfico
do Líder narcisista e pantomímico
(que toma o poder e saqueia):
- suas sandálias de prata
e sua coroa de espinhos
de ouro reluzente.
Diante de tal fatalidade
- uomo qualunque -
só nos resta o estoicismo
para corromper os alicerces do absolutismo.
Assumir o anonimato
do mais reles existencialismo
esperando ventos admonitórios
que hão de vir, acreditemos.
O Mundo Está Prestes a Rebentar
Não olhes.
O mundo está prestes a rebentar.
Não olhes.
O mundo está prestes a despejar a sua luz
E a lançar-nos no abismo das suas trevas,
Aquele lugar negro, gordo e sem ar
Onde nós iremos matar ou morrer ou dançar ou chorar
Ou gritar ou gemer ou chiar que nem ratos
A ver se conseguimos de novo um posto de partida.
in "Várias Vozes"
Tradução de Pedro Marques e Jorge
Silva Melo
Aos Estados
Aos Estados,
ou a qualquer um deles, ou a uma cidade
a qualquer dos Estados, digo-lhes: Resiste
muito, obedeçe
pouco,
Uma vez
admitida a obediência sem protesto, é a servidão total
Uma vez
totalmente escravizado, nenhuma Nação, Estado
ou Cidade da terra voltará a reconquistar a
liberdade.
Sol de Agosto:
V
Rebenta
em mim um mar de força.
É
maré cheia!
Mar
que atiro à praia, seguro e rijo,
Sem
que o tolham loas de sereia.
E
a vida já me doeu...
Mas
não tomei ópio nem olhei o céu,
embora
chorasse como os vencidos.
Agora
é sol e sangue
o
búzio que trago nos sentidos.
1988, p.69).
Como se fosse Ho Chin Min
para o herói vietkong que queria a Paz
Era uma guerra
em um campo
de arroz.
Eu não entendo
guerra
em campo de arroz,
mas era uma guerra
em um campo
de arroz.
Homens e mulheres,
crianças, cães e aves
se escondiam,
nessa agonia
de medo e morte.
Mas de repente,
nesse fogo,
entre uma bala
e uma bomba
passou uma borboleta
Deus abençoe a América
Lá vão eles outra vez,
Os Ianques e as suas blindadas paradas
Entoando as suas baladas de alegria
A galope pelo vasto mundo
Louvando o Deus da América.
As sarjetas estão entupidas de mortos
Dos que não puderam alistar-se
Dos outros que se recusam a cantar
Dos que estão a perder a voz
Dos que esqueceram a música.
Os cavaleiros têm chicotes que ferem.
A tua cabeça rola para a areia
A tua cabeça é uma poça no lixo
A tua cabeça é uma nódoa no pó
Os teus olhos apagaram-se e o teu nariz
Fareja apenas o fedor dos mortos
E todo o ar morto está vivo
Com o cheiro do Deus da América.
in Guerra
Tradução de
Pedro Marques, Jorge Silva Melo e Francisco Frazão,
Quasi
Edições, Junho 2003
FOTOGRAFIA DO 11 DE SETEMBRO
Pularam dos andares em chamas –
um, dois, alguns outros,
acima, abaixo.
A fotografia os manteve em vida,
e agora os preserva
acima da terra rumo à terra.
Ainda estão completos,
cada um com seu próprio rosto
e sangue bem guardado.
Há tempo suficiente
para cabelos voarem,
para chaves e moedas
caírem dos bolsos.
Permanecem nos domínios do ar,
na esfera de lugares
que acabam de se abrir.
Só posso fazer duas coisas por eles –
descrever este voo
e não acrescentar o último verso.
LOUVOR DE ABRIL
Quero este abril que me leva
pela mão à Liberdade;
que faz esquecer a treva,
que me inunda de verdade.
Quero este abril que me leva
pela mão à Liberdade.
Quero este abril que me faz
ser melhor prá o meu irmão;
e que me fala de paz
e me promete mais pão.
Quero este abril que me faz
ser melhor p´rá o meu irmão.
Quero este abril que nos diz
que a Pátria será de todos;
e pr´á o homem ser feliz
há-de nascer sol a todos.
Quero este abril que nos diz
que a Pátria será de todos.
Quero este abril que aos meus braços
há-de dar a justa paga;
que entre lutas e fracassos
um mundo novo nos traga.
Quero este abril que aos meus braços
há-de dar a justa paga.
Quero este abril amigo
que é fonte de quanto valho,
como música de trigo,
ou poemas de trabalho..
Quero este abril amigo
que é fonte de quanto valho.
Quero este abril— voo de asa —
que a todos dê intrução;
que a todos dê uma casa
e mais saúde e mais pão.
Quero este abril — voo de asa —
que a todos dê instrução.
Porque, instruído, este povo
vencerá a escuridão;
e verá o mundo novo
construído por sua mão.
Porque, instruído, este povo
vencerá a escuridão.
Querer a vida melhor
é este querer de abril,
contra algum gesto opressor,
ou contra aquilo que é vil.
— Que a vida será melhor
se defendermos abril.