Abraçabril
1974-2024
"Voar fora da asa"
Os nomes novos
Na primeira manhã da revolução
todos os nomes mudaram. As tuas mãos
eram pássaros os teus braços asas
os teus lábios átrios de canções que
sobrevoavam
alegrias irrecusáveis. Os milagres
sucediam-se
sem qualquer comando divino. Os desapossados
de tudo eram providos da maior esperança. As
flores
não murchavam. Os peixes multiplicavam-se
na brasa diária dos afetos. Nas manhãs
seguintes
acordávamos sempre à espera da queda
de mais um velho costume repressivo. A garganta
habitava todas as palavras que lutavam
contra os velhos saberes quantitativos
que só perguntavam quantos dólares tem um
lucro
ou quantos litros tem um almude. Trocámos o
nome
das praças das pontes e das avenidas. Levantámos
as cabeças curvadas com vozes ao alto. A Utopia
do Bem e da Esperança invadia-nos o peito
e nenhuma morte se atrevia a silenciar
este novo país contaminado de Futuro.
Canção da esperança
Corações nossos faróis
Na noite desta batalha
Num refulgir de navalha
Rasgai o véu aos heróis.
As nuvens hão-de passar!
Penetra-as o sol da alma
Para além do próprio olhar.
E os medos de arrefecer
Espanta-os um peito calmo
À firmeza de vencer.
Os golpes de viva dor
Temperam a fé futura
Constante forjam o amor.
E as quedas não são fatais
Se a chama desta aventura
Em nós cresce ainda mais.
A luta nunca foi vã!
Os braços em liberdade
Levantam outro amanhã.
E os lábios dão a florir
Os hinos desta verdade:
É de acção nosso porvir.
Os Frutos
a árvore das palavras
povoa-se
de frutos
e
esses pequeninos frutos
abrigam
o silêncio
dos
meninos mortos de gaza.
O
abril roxo de um país
“Onde emergimos da noite e do
silêncio
E livres habitamos a substância do
tempo”
Sophia de Mello Breymer
1.
Oh uivo de corpos ecoado por ratazanas
onde um país mergulha além das rosas
no horizonte da envelhecida visitação
dos cravos só raiz de cimento e alcatrão.
*
As palavras alagam-te, ó Portugal de sol
com tufos negros de peixes negros,
os galhos partidos nos olhos da esperança
dos ramos desalentados são um abril roxo.
*
É como se nenhuma manhã inteira e limpa
sob a névoa, como um tal D. Sebastião,
alguma vez tenha irrompido do seu musgo.
*
Palavras não de sol, palavras de flores
secas,
palavras de amor e morte, palavras já só
de
esperança ausente e do medo dessas
palavras.
2.
Uma espera é sempre o puro vislumbre
de um princípio de espaço primaveril,
neste eflúvio mudo do regaço abril
só um cravo partido entre a revolução.
*
já, e o abismo da memória de um país.
E mesmo mudando uns frágeis versos
para perto das águas quentes do rio,
como as rosas tristes, estes cravos são
*
hoje como as grandes escamas secas
de um peixe sufocado no sopro do Tejo.
“Fora existe o mundo”, aqui, a luzente
*
brutalidade da inércia de ti, Portugal:
não, não, esta nunca foi a tua madrugada
esperada, a nossa utopia inteira e limpa!
REVOLUÇÃO, JÁ?
“A
poesia está na rua”
Sophia,
25 de Abril de 1974
Agora, que já fizemos a revolução,
podemos começar a renovar a habitação?
Os professores estão na rua.
Os médicos estão na rua.
Os agricultores estão na rua.
Os polícias estão na rua
(mas não para parar os outros;
estão na rua como os outros lá estão.)
Os turistas estão na rua.
Milhões de turistas estão na rua.
Vão parando para tomar café nas agências
imobiliárias, e vão comprando palácios,
aqui e ali,
entre um pastel de Belém e uma imperial.
Alguns compram casas com gente lá dentro, e
despejam
o lixo e a gente das casas que ficam
vazias lá dentro,
mas eles voltam mais cheios lá para fora.
Sentem-se mais vistos.
As pessoas estão na rua
(mas não para passear como os turistas;
estão como os turistas não estão:
a dormir na rua, sem habitação.)
Os jovens estão na rua.
Comem o pão que a História amassou,
comem pão de ontem em casa dos pais
e os pais ajudam a pagar o bilhete de
avião
para que os filhos de amanhã comam pão de amanhã.
E, assim, alguns jovens felizes estão na
rua, também,
mas na rua de Sydney, de Londres ou Paris.
Falam bem inglês e até francês.
Sabem bem dizer saudade em
português.
Jantam sushi e alugam apartamentos com
aquecimento
central zona central, mas telefonam muito
à família
e o que queriam era viver em Portugal.
As flores não estão na rua,
como no poema de Drummond de 1945.
A poesia não está na rua,
como no verso de Sophia de 1974.
Agora, que já fizemos a revolução,
porque não amassamos o próprio pão
na nossa própria habitação?
Já faz tempo
que escolhi
A luz que me abriu os olhos
para a dor dos deserdados
e os feridos de injustiça,
não me permite fechá-los
nunca mais, enquanto viva.
Mesmo que de asco ou fadiga
me disponha a não ver mais,
ainda que o medo costure
os meus olhos, já não posso
deixar de ver: a verdade
me tocou, com sua lâmina
de amor, o centro do ser.
Não se trata de escolher
entre cegueira e traição.
Mas entre ver e fazer
de conta que nada vi
ou dizer da dor que vejo
para ajudá-la a ter fim,
já faz tempo que escolhi.
no livro "Mormaço na floresta"
Civilização Brasileira, 1981.
Palestina
Não são donos sequer da sombra
Que no chão projectam ao passar
Tudo ou quase tudo lhes foi tirado
A terra, os ribeiros, as ovelhas dispersas pela terra
Os títulos de posse das pequenas quintas.
Tudo ou quase tudo
Menos o futuro amarrotado num bolso
Menos a esperança, menos o olhar.
Fotos do Fogo
Chega-te a mim
mais perto da lareira
vou-te contar
a história verdadeira
A guerra deu na tv
foi na retrospectiva
corpo dormente em carne viva
revi p´ra mim o cheio aceso
dos sítios tão remotos
e do corpo ileso
vou-te mostrar as fotos
olha o meu corpo ileso
Olha esta foto, eu aqui
era novo e inocente
"às suas ordens, meu tenente!"
E assim me vi no breu do mato
altivo e folgazão
ou para ser mais exacto
saudoso de outro chão
não se vê no retrato
Chega-te a mim
mais perto da lareira
vou-te contar
a história verdadeira
Nesta outra foto, é manhã
olha o nosso sorriso
noite acabou sem ser preciso
sair dos sonhos de outras camas
para empunhar o cospe-fogo e o lança-chamas
estás são e salvo e logo
"viver é bom", proclamas
Eu nesta, não fiquei bem
estou a olhar para o lado
tinham-me dito: eh soldado!
É dia de incendiar aldeias
baralha e volta a dar
o que tiveres de ideias
e tudo o que arder, queimar! no fogo assim te estreias
Chega-te a mim
mais perto da lareira
vou-te contar
a história verdadeira
Nesta outra foto, não vou
dar descanso aos teus olhos
não se distinguem os detalhes
mas nota o meu olhar, cintila
atrás da cor do sangue
vou seguindo em fila
e atrás da cor do sangue
soldado não vacila
O meu baptismo de fogo
não se vê nestas fotos
tudo tremeu e os terremotos
costumam desfocar as formas
matamos, chacinamos
violamos, oh, mas
será que não violamos
as ordens e as normas?
Chega-te a mim
mais perto da lareira
vou-te contar
a história verdadeira
Álbum das fotos fechado
volto a ser quem não era
como a memória, a primavera
rebenta em flores impensadas
num livro as amassamos
logo após cortadas
já foi há muitos anos
e ainda as mãos geladas
Chega-te a mim
mais perto da lareira
vou-te contar
a história verdadeira
quando a recordo
sei que quase logo acordo
a morte dorme parada
nesta morada
Uma pequenina luz bruxuleante
não na distância brilhando no extremo da estrada
aqui no meio de nós e a multidão em volta
une toute petite lumière
just a little light
una picolla… em todas as línguas do mundo
uma pequena luz bruxuleante
brilhando incerta mas brilhando
aqui no meio de nós
entre o bafo quente da multidão
a ventania dos cerros e a brisa dos mares
e o sopro azedo dos que a não vêem
só a adivinham e raivosamente assopram.
Uma pequena luz
que vacila exacta
que bruxuleia firme
que não ilumina apenas brilha.
Chamaram-lhe voz ouviram-na e é muda.
Muda como a exactidão como a firmeza
como a justiça.
Brilhando indeflectível.
Silenciosa não crepita
não consome não custa dinheiro.
Não é ela que custa dinheiro.
Não aquece também os que de frio se juntam.
Não ilumina também os rostos que se curvam.
Apenas brilha bruxuleia ondeia
indefectível próxima dourada.
Tudo é incerto ou falso ou violento: brilha.
Tudo é terror vaidade orgulho teimosia: brilha.
Tudo é pensamento realidade sensação saber: brilha.
Tudo é treva ou claridade contra a mesma treva: brilha.
Desde sempre ou desde nunca para sempre ou não:
brilha.
Uma pequenina luz bruxuleante e muda
como a exactidão como a firmeza
como a justiça.
Apenas como elas.
Mas brilha.
Não na distância. Aqui
no meio de nós.
Brilha