quinta-feira, 25 de julho de 2024

MISE AU POINT de Cochat Osório

MISE AU POINT

de

Cochat Osório

 

O que é que eles querem mais?

É tudo?

Levem tudo então.

Podem levar aquilo que puderem.

Levem também o resto.

 

Mas não!

 

O resto não.

 

Para levar o resto que sou eu.

Não é bem isso,

O que sobra daquilo que sou eu,

Não é também,

Só o que tenho a mais para ser eu...

 

Em conclusão:

 

Para levarem o saldo

 

Precisam da força que não têm,

Precisam da guerra que não têm

 

Precisavam de ter um coração.

 

Mas podem levar tudo.

E o resto

O eu.

 

Ficarei quieto, calmo, cego e mudo

Principalmente mudo.

 

Não serei eu.

 

Já sei,

Bem sei.

 

E não farei o mínimo protesto.

 

Com uma condição:

Deixem ficar apenas o vazio,

O silêncio concreto,

Espesso, opaco.

O silêncio que ofende,

Ou dá a esta vida

Um riso intencional

E áspero

E incorrecto

E frio

Mas é apenas quando se por acaso ri.

 

Hei-de fincar com força os dentes

Na polpa saborosa e farta do silêncio

Deste silêncio cheio de todas as matérias-primas

Que se gastam para fazer o nada,

E com o nada aberto ao meio, como um pão

A facada de (gula?) amordaçada

Numa fatia grossa de outro nada para recheio

Hei-de sentir a força alimentada

E a experiência do meu velho tempo gasto

Usado e gasto

Que (ensina?)

Sabor sem conteúdo,

Nada a fingir de tudo

Café sem cafeína

 

Mas é preciso

 

Hei-de tirar do nada a força de um sorriso,

Hei-de cumprir a minha sina!

 

Eu gosto do silêncio com silêncio

Cru e sem tempero

Estar nu, dá a noção exacta do princípio

Faz rebentar vontades de infinito

A certeza do zero.

 

Isto, porque o melhor é começar e não partir do meio.

 

É que o princípio é tudo o que virá depois

E ainda não veio,

 

É partir de viagem, sem saudades nem remorsos

E também sem bagagem.

 

Levem portanto tudo quanto existe.

 

Os livros velhos não...

Pelo menos os livros muito lidos não…

Os livros muito gastos pelos olhos não…

Esses que deram sumo a esta insaciedade que não finda

Podem servir-me de aconchego

Podem dizer o que me falta

Podem conter um resto de substância ainda.

 

Deixem ficar os livros muito lidos só.

 

Não!

 

Nem esses quero já

Não quero nada.

O que ficar na solidão

Terá um cheiro de velas apagadas

De compaixão e dó.

 

As palavras também, fiquem com elas

Hei-de arranjar palavras novas

Simples, rasgadas, abertas de par em par

Sobre a verdade

E o pensamento debruçado nelas

Puro, limpo, vivo

Sentir o ar fresco das manhãs

E a magia das noites de luar a entrar pelas janelas.

Palavras novas, sim, concretas

Que estruturem verdades conscientes

Que sejam palavras claras de gente.

 

Essas que andam ai nos jornais, nos discursos

Caricaturas de palavras sepulturas

Sarcófagos de ideias já passadas

Rótulos, formulas

Vazio impresso, colado em frascos de purgante

De bom-tom e bem pensante.

Essas palavras todas podem levá-las

Para encher o silêncio, o vazio e o nada.

 

Se não tiver palavras novas

Hei-de inventá-las

Palavras impelidas pela força imensa de serem

O que são e de saberem sempre aonde se dirigem

 

Com elas

 

Falarei a linguagem necessária

Aos contactos dos homens regressados à origem

 

O corpo. Também. Aguentará quanto puder

Projectores sobre os olhos

Jorros de água na nuca

Queimaduras na carne

Ou deixem-no de pé

Sem repouso de pé

Sem respeito de pé

Sem piedade e pé

 

Sonâmbulo de sono e de cansaço de pé

Farrapo humano a oscilar (  ?   ) deixo de pé

E deixem-no estar de pé

Deixem-no estar a pé

Que falhe o coração ou a vontade

Ou vença, ou quebre, ou fale

Ou se liberte do martírio a rebentar os pés.

 

Pouco importa.

 

Levem tudo o que houver

Tudo quanto agarrar essa ganância desmedida

 

Mas é bom que não esqueça:

 

Que o regresso começa um tudo-nada antes da partida

 

Está no que fica

No que ninguém destrói

No que os outros recordam só por recordar

Nas pegadas, na lama que secou

Na saudade

Na angústia

Esta esperança de voltar

E a certeza de encontrar

Um lugar posto na mesa

E o direito de ficar.

 

Não sendo assim

 

Melhor é não voltar

E não bater às portas

Não acordar as velhas ilusões que já estão mortas

Melhor é ser um estranho para todos

Os que esqueceram

Os que não querem

Os que não lembram já.

 

Melhor é ser ausente e já presente

Partido para sempre e já chegado

Com o tempo cortado na ponta da indiferença

E partir pelo mundo ao deus-dará

E tentar renascer

 

Para estar só

 

É preferível estar só noutro sítio qualquer

 

E eu sei que fico sempre e hei-de voltar

O que deixei de mim e o que sobre de mim para falar

Só por isso volto

 

Porque não se partiu completamente

Porque não se quebrou o fio do contacto

Que une um homem sempre ao outro homem

E que lhe dá o sentido de conjunto

O lugar na multidão

O direito de ser gente

 

Eu sei que estas palavras gastas uma a uma

Palavras de um rosário de orações humanas

São o rasto indelével da passagem de um homem

Que vibrou e que viveu

São um resto de mim

O que sobra

O saldo a transportar

Direito de voltar e ser ainda um homem

Seja qual for o mundo que vier

Só por isso apenas porque fico

Não me importa que levem ou deixem o que querem levar

 

Basta o silêncio vazio e o nada

Basta uma noite triste e amargurada

Uma esperança, uma dúvida, um receio

Para saber que nada se perdeu

 

Voltarei nas palavras renascidas

Voltarei nas cadências revividas

Nas verdades gritadas

Nas canções abafadas

No ritmo, ritmo, ritmo

 

Neste oceano de ritmos

Que a minha voz criou, a razão embalou, e o coração já deu.

 

O que é que eles querem mais?

 

Tudo?

 

Levem tudo então

Voltem atrás

Procurem mais

Deitem a mão a tudo quanto há

 

Partam com a certeza consolada

De não deixar restos de nada

De que nada esqueceu

 

Há-de ficar apenas o silêncio

Esta ideia de ausência consumida

Esse resto de vida mutilada

Que é a vossa presença, que é o vosso progresso

Que é o vosso labéu

 

E então

 

O que brotar depois será o meu regresso

 

E quando grito meu

É porque eu sei que ele é também dos outros

Todos os que exigiram dignidade

Todos os que perderam até a vida

Todos os que o silêncio tornou esperança

Todos os que a ganância não venceu

 

O que brotar depois será sempre um regresso

 

E no regresso

 

Eu!

 

 

sexta-feira, 19 de julho de 2024

Zeca Afonso - Os Índios da meia praia


 
 

Os Índios da Meia-Praia

Aldeia da Meia Praia
Ali mesmo ao pé de Lagos
Vou fazer-te uma cantiga da melhor
Que sei e faço de Monte Gordo vieram alguns
Por seu próprio pé um chegou de bicicleta
Outro foi de marcha à ré
Quando os teus olhos tropeçam no
Voo de uma gaivota em vez de peixe vi peças
De oiro caindo na lota
Quem aqui vier morar, não traga mesa nem cama
Com sete palmos de terra
Se constrói uma cabana
Iiiii iuuuu
Iiiii iuuuu
Tu trabalhas todo o ano
Na lota deixam-te mudo
Chupam-te até ao tutano
Levam-te o couro cabeludo
Quem dera que a gente
Tenha de agostinha valentia
Para alimentar a sanha de esganar a burguesia
Adeus disse a Monte Gordo
Nada o prende ao mal passado
Mas nada o prende ao presente se
Só ele é o enganado
Iiiii iuuuu
Iiiii iuuuu
Oito mil horas contadas laboraram a preceito
Até que veio o primeiro documento autenticado
Eram mulheres e crianças
Cada um com seu tijolo
Isto aqui era uma orquestra
Quem diz o contrário é tolo
E se a má língua não cessa
Eu daqui vivo não saia
Pois nada apaga a nobreza dos
Índios da Meia Praia
Foi sempre a tua figura tubarão de mil aparas
Deixas tudo à dependura quando
Na presa reparas
Iiiii iuuuu
Iiiii iuuuu
Das eleições acabadas do resultado previsto
Saiu o que tendes visto
Muitas obras embargadas
Mas não por vontade própria
Porque a luta continua
Pois é dele a sua história e
O povo saiu à rua
Mandadores de alta finança fazem
Tudo andar p'ra trás
Dizem que o mundo só anda
Tendo à frente um capataz
Iiiii iuuuu
Iiiii iuuuu
Eram mulheres e crianças cada
Um com seu tijolo
Isto aqui era uma orquestra
Que diz o contrário é tolo
E toca de papelada no vaivém dos ministérios
Mas hão-de fugir aos berros inda
A banda vai na estrada
Iiiii iuuuu
Iiiii iuuuu
Iiiii iuuuu
Iiiii iuuuu
Iiiii iuuuu
Iiiii iuuuu

José Afonso