quinta-feira, 29 de dezembro de 2022

‘Ao ser preso’ - Salim Jabran

 

Ao ser preso, o poeta Salim Jabran ouviu do policial que o algemava: "Agora já podes escrever poemas". O poeta respondeu:

‘Ao ser preso’

Sim
levarei as algemas

mas
farei com que os prisioneiros ouçam os poemas
que eu declamava nas praças e nas ruas
as algemas oprimem-me as mãos
uma vergonha abrasa a consciência
sim... mas não a minha
abrasa o abjeto poder que te produziu
a ti
verdugo

Salim Jabran

quarta-feira, 28 de dezembro de 2022

Poemas Soltos - Emily Dickinson

 

Poemas Soltos:

Diagnóstico da Bíblia, por um Garoto —
A Bíblia é um Tomo indizível
Escrito por Homens ignotos —
Guiados por santos Espectros —
Assuntos — Belém e Nazaré —

A Gênese — Ancestral de Belém —
Satã — o Opositor —
Judas — primeiro Inadimplente — grande [Infrator]
Davi — o Trovador —

Pecado — distinto Precipício —
Mas aqui eu já desisto —
Garotos crentes — solitários —
Outros — perdidos de Cristo

Emily Dickinson

 

sábado, 24 de dezembro de 2022

A Corrente - Carlos Drummond de Andrade

 

A Corrente

Sente raiva do passado
que o mantém acorrentado.
Sente raiva da corrente
a puxá-lo para a frente
e a fazer do seu futuro
o retorno ao chão escuro
onde jaz envilecida
certa promessa de vida
de onde brotam cogumelos
venenosos, amarelos,
e encaracoladas lesmas
deglutindo-se a si mesmas.

 

Carlos Drummond de Andrade

 

sexta-feira, 23 de dezembro de 2022

O MELHOR PRETEXTO - Alexandre O’Neill

 

O MELHOR PRETEXTO

 

É tão frágil a vida,

tão efémero tudo!

(Não é verdade, amiga,

Olhinhos-cor-de-musgo?)

 

E ao mesmo tempo é forte,

forte da veleidade

de resistir à morte

quanto maior a idade.

 

Assim, aos trinta e sete,

fechados alguns ciclos,

a vida ainda pede

mais sentimentos, vínculos.

 

Não tanto os que nos deram

a fúria de viver,

como esses descobertos

depois de se saber

 

que a vida não é outra

senão a que fazemos

(e a vida é uma ,

pois jamais voltaremos).

 

Partidários da vida,

melhor: do que está vivo,

digamos «não!» a tudo

que tenha outro sentido.

 

E que melhor pretexto

(quem o saiba que o diga!)

teremos p’ra viver

senão a própria vida?

 

Alexandre ONeill

 

terça-feira, 20 de dezembro de 2022

Álbum de Família - César Cantoni

 

Álbum de Família

 

Morreu meu pai, morreram meus avós,
morreram meus tios de sangue e por afinidade.
Uma família inteira de ferreiros,
marceneiros, curtidores, pedreiros,
jaz agora sem forças em baixo da terra.

E eu, o mais inútil de todos,
o que não sabe fazer nada com as mãos,
logrei sobreviver impunemente
para chorar diante de uma foto
o melhor do meu sangue.

César Cantoni

Trad.: Nelson Santander

 

César Cantoni – Album de Familia

Murió mi padre, murieron mis abuelos,
murieron mis tíos carnales y políticos.
Una familia entera de herreros,
ebanistas, curtidores, albañiles,
yace ahora sin fuerzas bajo tierra.

Y yo, el más inútil de todos,
el que no sabe hacer nada con las manos,
he logrado sobrevivir impunemente
para llorar delante de una foto
lo mejor de mi sangre.

 

segunda-feira, 19 de dezembro de 2022

E ppur Si Muove - Affonso Romano de Sant’Anna

 


E ppur Si Muove

Não se pode calar um homem
Tirem-lhe a voz, restará o nome.
Tirem-lhe o nome
e em nossa boca restará
a sua antiga fome.

Matar, sim, se pode.
Se pode matar um homem.
Mas sua voz, como os peixes,
nada contra a corrente
a procriar verdades novas
na direção contrária à foz.

Mente quem fala que quem cala consente.
Quem cala, às vezes, re-sente,
Por trás dos muros dos dentes,
edifica-se um discurso transparente.

Um homem não se cala
com um tiro ou mordaça. A ameaça
só faz falar nele
o que nele está latente.

Ninguém cala ninguém,
pois existe o inconsciente.
Só se deixa enganar assim
quem age medievalmente.
Como se faz para calar o vento
quando ele sopra
com a força do pensamento?
Não se pode cassar a palavra a um homem,
como se caçam às feras o pêlo e o chifre
na emboscada das savanas.
Não se pode, como a um pássaro,
aprisionar a voz humana
A gaiola só é prisão
para quem não entende
a liberdade do não.
Se a palavra é uma chave,
que fala de prisão, o silêncio
é uma ave- que canta na escuridão.

A ausência da voz
é, mesmo assim, um discurso.
É um rio vazio, cujas margens sem água
dão notícia de seu curso.

No princípio era o Verbo
– bem se pode interpretar:
no princípio era o Verbo
e o Verbo do silêncio
só fazia verberar.
Na verdade, na verdade vos digo:
mais perturbador que a fala do sábio
é seu sábio silêncio,
con-sentido.

O que fazer de um discurso interrompido?
Hibernou? Secou na boca, contido?
Ah, o silêncio é um discurso invertido,
modo de falar alto
– o proibido.

O silêncio
depois da fala
não é mais inteiro.
Passa a ter duplo sentido.
É como o fruto proibido, comido
não pela boca,
mas pela fome do ouvido.

Se um silêncio é demais,
quando é de dois, geminado,
mais que silêncio
– é perigo,
é uma forma de ruído.

Por isso que o silêncio
de algumas consciências,
quando passa a ser ouvido
não é silêncio
– É estampido.

Affonso Romano de Sant’Anna

 

domingo, 18 de dezembro de 2022

Ode ao deus dos ateus - Ellen Bass

 

Ode ao deus dos ateus

O deus dos ateus não irá queimá-lo na fogueira
ou arrancar suas unhas. Tampouco o fará
clamar ou se curvar, abrir a própria pele com espinhos,
ou adquirir folhas de ouro e vitrais.
Não insistirá que você jejue ou distorça
a forma de sua fome sexual.
Não há guerras travadas nem mulheres apedrejadas em nome dele.
Você não precisa encobrir o rosto
ou sangrar os joelhos por ele.
Você não precisa louvar.

As ameixas vicejam extravagantemente,
os golfinhos cosem o céu ao mar.
Cada seixo e samambaia, charco e peixe,
pertence a você, quer você creia ou não.

Se a neblina se dissipa
quando uma sombra vermelho-ferrugem desliza pela lua,
o deus dos ateus não o está recompensando
por acordar no meio da noite
e tremer descalço no campo.

Este deus não se deixa levar pelo almíscar
do incenso ou pelas tigelas de laranjas,
a máscara lustrada com cochinilha,
costela polida do leão.
Prove das folhas maceradas
da planta sagrada. Dance
até que as estrelas se confundam com um rio de lantejoulas.
A chuva, se vier, virá.
Este deus ama o vírus tanto quanto a criança.

Ellen Bass

Trad.: Nelson Santander

BASS, Ellen. “Ode to the God of Atheists”.

 In:ike a Beggar. EUA: Copper Canyon Press, March 25, 2014

   

Ode to the God of Atheists

The god of atheists won’t burn you at the stake
or pry off your fingernails. Nor will it make you
bow or beg, rake your skin with thorns,
or buy gold leaf and stained-glass windows.
It won’t insist you fast or twist
the shape of your sexual hunger.
There are no wars fought for it, no women stoned for it.
You don’t have to veil your face for it
or bloody your knees.
You don’t have to sing.

The plums bloom extravagantly,
the dolphins stitch sky to sea.
Each pebble and fern, pond and fish
is yours whether or not you believe.

When fog is ripped away
just as a rust-red shadow slides across the moon,
the god of atheists isn’t rewarding you
for waking in the middle of the night
and shivering barefoot in the field.

This god is not moved by the musk
of incense or bowls of oranges,
the mask brushed with cochineal,
polished rib of the lion.
Eat the macerated leaves
of the sacred plant. Dance
till the stars blur to a spangly river.
Rain, if it comes, will come.
This god loves the virus as much as the child.

 

sábado, 17 de dezembro de 2022

Poeta de combate - Joaquim Pessoa

 

Poeta de combate

 

Poeta de combate me chamaram.

De combate serei. Não mercenário!

Poeta de combate é um operário

das palavras que nunca se entregaram.

Poeta de combate! E porque não?

Sou poeta. Serei também soldado.

O meu canto será um canto armado

e o meu nome de guerra uma canção.

Poeta de combate me quiseram

os que cedo da luta desertaram

ou aqueles que nunca combateram.

Poeta de combate eu hei de ser

até quando o meu povo precisar

ou nada mais houver a combater.

 

Joaquim Pessoa

in AMOR COMBATE, Moraes Editores

quarta-feira, 14 de dezembro de 2022

Aqueles domingos de inverno - Robert Hayden

 

Aqueles domingos de inverno

 

Também aos domingos
meu pai acordava cedo
e vestia suas roupas no frio azul escuro,
depois, com as mãos rachadas doloridas
do trabalho no tempo durante a semana, ele fazia
os fogos empilhados arderem. Ninguém nunca o agradeceu.

Eu acordava e ouvia o
frio se partindo em fragmentos.
Quando as salas ficavam aquecidas, ele me chamava,
e lentamente eu me levantava e me vestia,
temendo a raiva crónica daquela casa,

Falava indiferentemente
com ele,
que havia expulsado o frio
e também engraxado meus sapatos bons.
O que sabia eu, o que sabia eu
dos ofícios austeros e solitários do amor?

Robert Hayden

Trad.: Nelson Santander

Those Winter Sundays

Sundays too
my father got up early
and put his clothes on in the blue black cold,
then with cracked hands that ached
from labor in the weekday weather made
banked fires blaze. No one ever thanked him.

I’d wake and hear the
cold splintering, breaking.
When the rooms were warm, he’d call,
and slowly I would rise and dress,
fearing the chronic angers of that house,

Speaking indifferently
to him,
who had driven out the cold
and polished my good shoes as well.
What did I know, what did I know
of love’s austere and lonely offices?

 

terça-feira, 13 de dezembro de 2022

Arquitetura Nascente & Permanente - Joaquim Cardozo

Arquitetura Nascente & Permanente

(A Óscar Niemeyer)


Atraídos pelo silêncio
E pela paz noturna os homens
Chegaram; por ínvias florestas
Abriram sendas, e passaram,
Das lianas através da renda,
Através das fendas das montanhas.
Mudos de medos e arrepios,
Guiados por bandeiras de vento,
Pelo coro dos rios selvagens...
Vieram de paragens flutuantes,
Andaram passos vacilantes,
Venceram espaços incertos
E inacessíveis, mas chegaram...
Chegaram e reacenderam
A pedra fria. Abriram portas
Cavaram profundas abóbadas,
Romperam pátios, galerias...

Joaquim Cardozo

“O engenheiro-poeta que ergueu as maiores obras de Óscar Niemeyer