sábado, 30 de setembro de 2017

Lisboa com suas casas - Álvaro de Campos





Lisboa com suas casas

Lisboa com suas casas
De várias cores,
Lisboa com suas casas
De várias cores,
Lisboa com suas casas
De várias cores…
À força de diferente, isto é monótono.
Como à força de sentir, fico só a pensar.
Se, de noite, deitado mas desperto,
Na lucidez inútil de não poder dormir,
Quero imaginar qualquer coisa
E surge sempre outra (porque há sono,
E, porque há sono, um bocado de sonho),
Quero alongar a vista com que imagino
Por grandes palmares fantásticos.
Mas não vejo mais,
Contra uma espécie de lado de dentro de pálpebras,
Que Lisboa com suas casas
De várias cores.
Sorrio, porque, aqui, deitado, é outra coisa.
À força de monótono, é diferente.
E, à força de ser eu, durmo e esqueço que existo.
Fica só, sem mim, que esqueci porque durmo,
Lisboa com suas casas
De várias cores.

Álvaro de Campos  in Poesias de Álvaro de Campos, 1934


quinta-feira, 28 de setembro de 2017

O Terceiro Corvo - Ana Hatherly



O Terceiro Corvo

Oh Lisboa
como eu gostava de ser
o terceiro corvo do teu emblema…
estar implícita na tua bandeira
negra e branca
como tinta e papel
como escrita e espaço!

Ser teu desenho
tua nova lenda
invenção deste século
que já não inventa
e se interroga:
donde vieram estes corvos?

Como tu, Vicente,
eu também não sou de cá
não sou daqui
não pertenço a esta terra
e talvez nem sequer a este mundo…

Porém estou aqui
nesta dolorosa praia lusitana
cheia de um tumulto inútil
que enegrece as tuas areias
e polui o ventre do rio
que os golfinhos há muito desertaram

E olhando as nuvens dedilhadas pelo vento
sentindo a terna dor do teu sentir sentido
peço-te, Lisboa:
surge de novo bela
reinventa
a santidade perdida do teu emblema

Ana Hatherly, in Em Lisboa sobre o mar, Poesia 2001-2010



quarta-feira, 27 de setembro de 2017

E de novo, Lisboa, te remancho, - Alexandre O’Neill

E de novo, Lisboa, te remancho, 

E de novo, Lisboa, te remancho,
numa deriva de quem tudo olha
de viés: esvaído, o boi no gancho,
ou o outro vermelho que te molha. Sangue na serradura ou na calçada,
que mais faz se é de homem ou de boi?
O sangue é sempre uma papoila errada,
cerceado do coração que foi. Groselha, na esplanada, bebe a velha,
e um cartaz, da parede, nos convida
a dar o sangue. Franzo a sobrancelha:
dizem que o sangue é vida; mas que vida?
Que fazemos, Lisboa, os dois, aqui,
na terra onde nasceste e eu nasci?

Alexandre O’Neill, in De Ombro na Ombreira, 1969

terça-feira, 26 de setembro de 2017

CANTO E LAMENTAÇÃO NA CIDADE OCUPADA - Daniel Filipe


CANTO E LAMENTAÇÃO NA CIDADE OCUPADA

6.
Pelo silêncio na planície pela tranquilidade em tua voz
pelos teus olhos verdes estelares pelo teu corpo líquido de bruma
pelo direito de seguir de mão dadas na solidão noturna
lutaremos meu Amor

Pela infância que fomos pelo jardim escondido que não teve o nosso amor
pelo pão que nos recusam pela liberdade sem fronteiras
pelas manhãs de sol sem mácula de grades
lutaremos meu Amor

Pela dádiva mútua da nossa carne mártir
pela alegria em teu sorriso claro pelo teu sonho imaterial
pela cidade escravizada pela doçura de um beijo à despedida
lutaremos meu Amor

Pelos meninos tristes suburbanos
contra o peso da angústia contra o medo
contra a seta de fogo traiçoeira cravada
em nosso doce coração aberto
lutaremos meu Amor

Na aparência sozinhos multidão na verdade
lutaremos meu Amor

Daniel Filipe