sábado, 30 de novembro de 2013

Poema quase triste


Poema quase triste

Os homens passam sem darem por nada
carregados assim como eles vão
com suas sombras a ganharem gibas,
com os seus olhos a ficarem baços,
cheios de presbitia e astigmáticos.
Não lhes importa que nos frutos estejam
confissões de poetas e de heróis.
Os homens passam e não vêem nada,
olham apenas para as suas vidas,
para a filha doente ou para os filhos mortos.
Não se apercebem das árvores e das rochas,
sangue e nervos da terra.
Seguem tristes e com os seus olhares
voltados para dentro,
para os seus crimes ou para os seus sonhos.
Não param a escutar o coração da terra
que bate, tranquilo, sob o chão.
Tristemente aguardam os eléctricos
que os hão-de levar a suas casas
de paredes forradas pelos retratos
dos fantasmas antigos e até próximos.
É sem amor que trincam os frutos
coloridos no sangue de todos os mortos
e nem pensam que a terra se abrirá
a seus corpos alheios, certo dia.
Procuram suas chaves
e, de cabeça baixa, penetram em casa,
sentam-se à mesa e choram
com suas mulheres, livros, diários íntimos,
mas não falam sequer à Natureza
que lhes oferece, em vão,
todos os seus segredos e mistérios.
Deitam-se sonolentos,
fecham a luz e dão-se aos pesadelos
ou aos sonhos de quando eram meninos. . .
Embriagam-se ou matam-se
e entregam-se aos vícios ou às lágrimas. . .
Tristes os homens passam
sem verem que a terra lhes oferece
juntamente com frutos e canções.
 
António Rebordão Navarro
A Condição Reflexa
Poemas (1952 - 1982)
Imprensa Nacional Casa da Moeda

quinta-feira, 28 de novembro de 2013

DEFESA DA ALEGRIA - MÁRIO BENEDETTI



DEFESA DA ALEGRIA

Defender a alegria como uma trincheira
defendê-la do
escândalo e da rotina
da
miséria e dos miseráveis
das
ausências transitórias
e das definitivas

Defender a alegria como um princípio
defendê-la da
surpresa e dos pesadelos
dos
neutros e dos neutrões
das
doces infâmias
e dos
graves diagnósticos

Defender a alegria com uma bandeira
defendê-la do
raio e da melancolia
dos ingénuos e dos
canalhas
da
retórica e das paradas cardíacas
das
endemias e das academias

Defender a alegria como um destino
defendê-la do
fogo e dos bombeiros
dos
suicidas e dos homicidas
das
férias e do fardo
da
obrigação de estarmos alegres

Defender a alegria como uma certeza
defendê-la do
óxido e da sujeira
da
famosa ilusão do tempo
do
relento e do oportunismo
dos
proxenetas do riso

Defender a alegria como um direito
defendê-la de
deus e do inverno
das
maiúsculas e da morte
dos
sobrenomes e dos lamentos
do
azar
e também da alegria.

MARIO BENEDETTTI

Defensa de la alegría

Defender la alegría como una trinchera
defenderla del escándalo y la rutina
de la miseria y los miserables
de las ausencias transitorias
y las definitivas

defender la alegría como un principio
defenderla del
pasmo y las pesadillas
de los
neutrales y de los neutrones
de las dulces infamias
y los
graves diagnósticos

defender la alegría como una bandera
defenderla del rayo y la melancolía
de los ingenuos y de los canallas
de la
retórica y los paros cardiacos
de las
endemias y las academias

defender la alegría como un destino
defenderla del fuego y de los bomberos
de los
suicidas y los homicidas
de las vacaciones y del agobio
de la obligación de
estar alegres

defender la alegría como una certeza
defenderla del
óxido y la roña
de la
famosa pátina del tiempo
del relente y del oportunismo
de los
proxenetas de la risa

defender la alegría como un derecho
defenderla de dios y del invierno
de las mayúsculas y de la muerte
de los apellidos y las
lástimas
del
azar
y también de la alegría.

quarta-feira, 27 de novembro de 2013

Eduardo Valente da Fonseca

Ó vagarosa noite

Ó vagarosa noite a vir de manso
profunda e densa pela cidade toda.
A estas
horas onde em outros lados
floresce
amoroso o sol por sobre terras?
Ó
alegria de me ser em tudo.
Ó
humildes irmãos do grande mundo
deitados
sobre o sonho como quem
aguarda o
belo tempo de haver tudo!

Eduardo Valente da Fonseca

domingo, 24 de novembro de 2013

ESTE CAOS ORGANIZADO



ESTE CAOS ORGANIZADO

Este caos organizado que é o capitalismo,
esta
triunfante infâmia,
este nojo dos nojos,
com a sua opulência agressiva
e os
seus lacaios sem imaginação,
quando virá o grande vendaval que o varra,
para dar a todos conforme as suas necessidades,
e
não a miséria repartida
pelas
mãos parasitas e ávidas dos ricos?
Quando virá essa ofuscante claridade,
essa
lúcida paz amassada de suor,
e de
contentamentos para além
do
agudo contentamento da alvorada?
                                                    
             Armindo Rodrigues





sábado, 23 de novembro de 2013

Elefante de Abril - Carlos Pinhão



Elefante de Abril

A Revolução
teve uma flor
o cravo.
Não teve um animal
e, como tal,
proponho o elefante
tão paciente e sofredor
durante tanto ano
mas quando a paciência se esgotou
foi coisa de se ver
violento
eficaz
empolgante.
Depois, voltou a ser
lento
bom rapaz
algo distante.
Mas, atenção
nunca se viu morrer
um elefante!

Carlos Pinhão
Bichos de Abril,