terça-feira, 31 de janeiro de 2017

Amostra sem valor - António Gedeão

Amostra sem valor

Eu sei que o meu desespero não interessa a ninguém.
Cada um tem o seu, pessoal e intransmissível;
com ele se entretém
e se julga intangível.

Eu sei que a Humanidade é mais gente do que eu,
sei que o Mundo é maior do que o bairro onde habito,
que o respirar de um só, mesmo que seja o meu,
não pesa num total que tende para infinito.

sei que as dimensões impiedosas da Vida
ignoram todo o homem, dissolvem-no, e, contudo,
nesta insignificância, gratuita e desvalida,
Universo sou eu, com nebulosas e tudo.


1968

domingo, 29 de janeiro de 2017

A Humana Súmula - William Blake


Retrato de William Blake, por Thomas Phillips



A Humana Súmula

A Piedade deixaria de existir
Se não fizéssemos nós os Pobres de pedir;
E a Compaixão também acabaria
Se a todos, como nós, feliz chegasse o dia.

E a paz se alcança com mútuo terror,
Até crescer o egoísmo do amor:
A Crueldade tece então a sua rede,
E lança seu isco, cuidadosa, adrede.

Senta-se depois com temores sagrados,
E de lágrimas os chãos ficam regados;
A raiz da Humildade ali então se gera
Debaixo do seu pé, atenta, espera.

Em breve sobre a cabeça se lhe estende
A sombra daquele Mistério que ofende;
É aí que Verme e Mosca se sustentam
Do Mistério que ambos acalentam.

E o fruto que gera é o do Engano
Doce ao comer e tão malsano;
E o Corvo o seu ninho ali o faz
No mais espesso da sombra que lhe apraz.

Todos os Deuses, quer da terra quer do mar,
P'la Natureza esta Árvore foram procurar;
Mas foi em vão esta procura insana,
Esta Árvore cresce só na Mente Humana.

William Blake, in "Canções da Experiência"
Tradução de Hélio Osvaldo Alves

sábado, 28 de janeiro de 2017

SONETO SUPERDESENVOLVIDO - Ruy Belo

SONETO SUPERDESENVOLVIDO

É tão suave ter bons sentimentos
consola tanto a alma de quem os tem
que as boas acções são inesquecíveis momentos
e é um prazer fazer bem

Por isso se no verão se chega a uma esplanada
sabe melhor dar esmola que beber a laranjada
Consola mais viver assim no meio de muitos pobres
que conviver com gente a quem não falta nada

E ao fim de tantos anos a dar do que é seu
independentemente da maneira como se alcançou
ainda por cima se tem lugar garantido no céu
gozo acrescido ao muito que se gozou

Teria este (se não tivesse outro sentido)
ser natural de um país subdesenvolvido

sexta-feira, 27 de janeiro de 2017

Cantar da Emigração (¡Pra a Habana!) - Rosalía de Castro



Cantar da Emigração
                                                
Este parte, aquele parte
e todos, todos se vão.
Galiza, ficas sem homens
que possam cortar teu pão

Tens em troca orfãos e orfãs
e campos de solidão
e mães que não têm filhos
filhos que não têm pais.

Corações que tens e sofrem
longas horas mortais
viúvas de vivos-mortos
que ninguém consolará
 

Tradução José Niza

¡Pra a Habana!

I
Vendéronlle os bois,
vendéronlle as vacas,
o pote do caldo
i a manta da cama.
Vendéronlle o carro
i as leiras que tiña;
deixárono sóio
coa roupa vestida.
"María, eu son mozo,
pedir non me é dado;
eu vou polo mundo
pra ver de ganalo.
Galicia está probe,
i á Habana me vou...
¡Adiós, adiós, prendas
do meu corazón!"

II
Cando ninguén os mira,
vense rostros nubrados e sombrisos,
homes que erran cal sombras voltexantes
por veigas e campíos.
Un, enriba dun cómaro
séntase caviloso e pensativo;
outro, ó pe dun carballo queda imóvil,
coa vista levantada hacia o infinito.
Alǵun, cabo da fonte recrinado,
parés que escoita atento o murmurío
de augua que cai, e eisala xordamente
tristísimos sospiros.
¡Van a deixá-la patria...!
Forzoso, mais supremo sacrificio.
A miseria está negra en torno deles,
¡ai!, ¡i adiante está o abismo...!

III
O mar castiga bravamente as penas,
e contra as bandas do vapor se rompen
as irritadas ondas
do Cántabro salobre.
Chilan as gaviotas
¡alá lonxe...!, ¡moi lonxe!,
na prácida ribeira solitaria
que convida ó descanso i ós amores.
De humanos seres a compauta línea
que brila ó sol adiántase e retórcese,
mais preto e lentamente as curvas sigue
do murallón antigo do Parrote.
O corazón apértase de angustia,
óiense risas, xuramentos se oien,
i as brasfemias se axuntan cos sospiros...
¿ÓNde van eses homes?
Dentro dun mes, no simiterio imenso
da Habana, ou nos seus bosques,
ide ver qué foi deles...
¡No eterno olvido para sempre dormen!
¡Probes nais que os criaron,
i as que os agardan amorosas, probes!

IV
"¡Ánimo, compañeiros!
Toda a terra é dos homes.
Aquel que non veu nunca máis que a propia,
a iñorancia o consome.
¡Áńimo! ¡A quen se muda Dio-lo axuda!
¡I anque ora vamos de Galicia lonxe,
verés desque tornemos
o que medrano os robres!
Mañán é o día grande, ¡á mar, amigos!
¡Mañán, Dios nos acoche!"
¡No sembrante a alegría,
no corazón o esforzo,
i a campana armoniosa da esperanza,
lonxe, tocando a morto!

V
Éste vaise i aquél vaise,
e todos, todos se van.
Galicia, sin homes quedas
que te poidan traballar.
Tes, en cambio, orfos e orfas
e campos de soledad,
e nais que non teñen fillos
e fillos que non tén pais.
E tes corazóns que sufren
longas ausencias mortás,

viudas de vivos e mortos
que ninguén consolará.