sexta-feira, 29 de junho de 2018

GUIA PARA CANDIDATOS AOS INFERNOS XI - Aduladores . Almeida Faria

GUIA PARA CANDIDATOS AOS INFERNOS

XI - Aduladores


Nós, os aduladores, adulamos por gosto.

Para nós, nada mais delicioso que adular

Gente famosa, poderosa, gente de posses,

Gente que nos ouça e olhe e lá de cima

Um dia, em público, nos ajude e elogie,

Gente que nos defenda se for preciso,

Gente que nos convide para o seu convívio,

Gente que nos consiga a condecoraçãozinha,

A sinecura, o título, o lugar político,

O prémio (merecido ou imerecido).

Adoramos os céus da fama, os amarelos

Do ouro, do prestígio, da conta na Suiça.

As metades das nossas caras de fugir

São a noite e o dia. Sob o nosso sorriso

Escondemos focinhos grossos, de porcos bulldog.

Chafurdamos no esterco, no lixo. Se nos descobrem,

Assobiamos para os lados e disfarçamos, sorrindo.



quarta-feira, 27 de junho de 2018

OLHAR SOBRE A GRÉCIA - Pablo Neruda

OLHAR SOBRE A GRÉCIA

Oh lágrimas, ainda não é tempo
de acudirdes aos meus olhos,
de acudirdes aos olhos dos homens,
pálpebras, erguei-vos
da escuridão do sono, claras
ou sombrias pupilas,
olhos sem lágrimas, olhai a Grécia
crucificada em seu madeiro.
Olhai-a toda
a noite, todo o ano, todo o dia,
vertendo o sangue do seu povo,
ferindo as fontes
em seu terrível capitel de espinhos.
Vede, olhos do mundo,
o que a Grécia, a pura,
suporta, a chicotada
do mercador de escravos,
e assim de noite e ano e mês e dia
vede como se levanta a cabeça
do seu povo orgulhoso.
De cada gota
caída do martírio
cresce de novo o homem,
o pensamento tece as suas bandeiras,
a acção confirma pedra a pedra
e mão a mão
a altura do castelo.

Oh Grécia clara,
se em ti a escuridão despejou o seu saco
de estrelas negras, sabes
que em ti própria
está a claridade, que tu recebes
a noite inteira em teu regaço
até que das tuas mãos
a aurora se levante,
voo branco molhado de orvalho.
À sua luz ver-te-emos,
antiga e clara mãe dos homens,
sorrir, vitoriosa,
mostrando-nos outra vez a tua
brancura
de estátua, entre os montes.

Pablo Neruda

(de As uvas e o vento, tradução de Albano Martins, Campo das Letras, 2007 / original: Las uvas y el viento, 1954)



terça-feira, 26 de junho de 2018

Aos Poetas - Miguel Torga



Aos Poetas

Somos nós
As humanas cigarras.
Nós,
Desde o tempo de Esopo conhecidos...
Nós,
Preguiçosos insectos perseguidos.

Somos nós os ridículos comparsas
Da fábula burguesa da formiga.
Nós, a tribo faminta de ciganos
Que se abriga
Ao luar.
Nós, que nunca passamos,
A passar...

Somos nós, e só nós podemos ter
Asas sonoras.
Asas que em certas horas
Palpitam.
Asas que morrem, mas que ressuscitam
Da sepultura.
E que da planura
Da seara
Erguem a um campo de maior altura
A mão que só altura semeara.

Por isso a vós, Poetas, eu levanto
A taça fraternal deste meu canto,
E bebo em vossa honra o doce vinho
Da amizade e da paz.
Vinho que não é meu,
Mas sim do mosto que a beleza traz.

E vos digo e conjuro que canteis.
Que sejais menestréis
Duma gesta de amor universal.
Duma epopeia que não tenha reis,
Mas homens de tamanho natural.

Homens de toda a terra sem fronteiras.
De todos os feitios e maneiras,
Da cor que o sol lhes deu à flor da pele.
Crias de Adão e Eva verdadeiras.
Homens da torre de Babel.

Homens do dia-a-dia
Que levantem paredes de ilusão.
Homens de pés no chão,
Que se calcem de sonho e de poesia
Pela graça infantil da vossa mão.

Miguel Torga, in 'Odes'


segunda-feira, 25 de junho de 2018

Os Justos - Jorge Luis Borges

Os Justos

Um homem que cultiva o seu jardim, como queria Voltaire.
O que agradece que na terra haja música.
O que descobre com prazer uma etimologia.
Dois empregados que num café do Sul jogam um silencioso xadrez.
O ceramista que premedita uma cor e uma forma.
O tipógrafo que compõe bem esta página, que talvez não lhe agrade.
Uma mulher e um homem que lêem os tercetos finais de certo canto.
O que acarinha um animal adormecido.
O que justifica ou quer justificar um mal que lhe fizeram.
O que agradece que na terra haja Stevenson.
O que prefere que os outros tenham razão.
Essas pessoas, que se ignoram, estão a salvar o mundo.

Jorge Luis Borges, in "A Cifra"
Tradução de Fernando Pinto do Amaral

domingo, 24 de junho de 2018

Censo demográfico - Mário Quintana




Censo demográfico


Não sei por que diziam que uma humilde cidadezinha
Tinha, por exemplo, umas quinze mil almas…
Almas? Hoje, o que elas têm são quinze mil bocas,
Loucas de fome!