quinta-feira, 29 de agosto de 2013

PROFECIA - Sidónio Muralha

PROFECIA

Cada gesto de ódio
cada gesto de prepotência
cada gesto para amordaçar a verdade
cada gesto para amparar a mentira
cada gesto que suprime outro gesto
cada gestoindigesto

-- voltará implacável como um boomerang
e ninguém escapará a essa lei.


Sidónio Muralha
 Passagem de Nível” (1942)
in Obras Completas do Poeta.

terça-feira, 27 de agosto de 2013

litania da crise - Jorge Castro



litania da crise

a crise cruza a crise
acrisolada
uma
crise em cruz
um ai Jesus
coberta de capuz
crucificada
crise do crash do cash
cheirando a
peixe
atrasada
crise p’ra pobre
que cobre
de
camisa esburacada
a
crise do rico
que sofre
frente a lagosta suada
crise de ter e de haver
ou de ter p’ra comer
restos de crise
e
mais nada
crise de ter
e de
ter
e de
ter mais
e
subir
sobre a montanha de corpos
meios vivos
meios mortos
até não ter onde ir
ficar p’ra trás
e
cair
e
ser degrau dessa escada
e
ali ao lado
a
crescer
basta querermos ver
outra vontade
outra estrada

Jorge Castro

sexta-feira, 23 de agosto de 2013

Jacques Prévert - UF!



Jacques Prévert
ACONTECIMENTOS

(Publicado em Les Cahiers G.L.M. em 1937)
(Tradução de Manuela Torres)
Uf!
não devemos ficar abatidos
temos de resistir
e comer
as moscas chupam
as andorinhas comem os dentes-de-leão
a família come a mortadela
o assassino come um molho de rabanetes
o motorista de táxi, na central dos motoristas,
rua Tolbiac,
come um bife de cavalo
toda a gente come menos os mortos
toda a gente come
os pederastas… as andorinhas
as girafas… os coronéis…
toda a gente come
menos o desempregado
o desempregado não come porque não tem nada para comer
está sentado no passeio
está cansado
esperamuito tempo que as coisas mudem
e começa a estar farto
de súbito levanta-se
e vai-se embora
à procura dos outros
dos outros
dos outros que não comem porque não têm nada para comer
dos outros muito cansados
dos outros sentados no passeio
e que esperam
que esperam que as coisas mudem e que estão fartos
e que vão à procura dos outros
todos os outros
todos os outros fartos e cansados
cansados de esperar
cansados…
Olhem, diz a andorinha aos filhos
são milhares deles
e os passarinhos põem a cabeça fora do ninho
e vêem os homens marchar
Se eles se mantiverem unidos
conseguirão comer
diz a andorinha
mas se se separarem irão morrer
Mantenham-se unidos, homens pobres
mantenham-se unidos,
gritam as pequenas andorinhas.
Mantenham-se unidos,
gritam os passarinhos
alguns homens ouvem-nos
saúdam com o punho
e sorriem.
* * *
Ouf
il ne faut pas se laisser abattre
il faut se soutenir
manger
les mouches lapent
les petits de l’hirondelle mangent le pissenlit
la famille la mortadelle
l’assassin une bote de radis
le chauffeur de taxi au rendez-vous des chauffeurs
rue de Tolbiac
mange une escalope de cheval
tout le monde mange sauf les morts
tout le monde mange
les pédérastes… les hirondelles…
les girafes… les colonels…
tout le monde mange
sauf le chômeur
le chômeur qui ne mange pas parce qu’il n’a rien à manger
il est assis sur le trottoir
il est très fatigué
depuis le temps qu’il attend que ça change
il commence à en avoir assez
soudain il se lève
soudain il s’en va
à la recherche des autres
des autres
des autres qui ne mange pas parce qu’ils n’ont rien à manger
des autres tellement fatigués
des autres assis sur les trottoirs
et qui attendent
qui attendent que ça change et qui en ont assez
et qui s’en vont à la recherche des autres
tous les autres
tous les autres tellement fatigués
fatigués d’attendre
fatigués…
Regardez dit l’hirondelle à ses petits
ils sont des milliers
et les petits passent la tête hors du nid
et regardent les hommes marcher
S’ils restent bien unis ensemble
ils mangeront
dit l’hirondelle
mais s’ils se séparent ils crèveront
Restez ensemble hommes pauvres
restez unis
crient les petits de l’hirondelle
restez ensemble hommes pauvres
restez unis
crient les petits
quelques hommes les entendent
saluent du poing
et sourient.
Jacques Prévert (1937)

sexta-feira, 16 de agosto de 2013

É Proibido - Pablo Neruda

É Proibido

É proibido chorar sem aprender,
Levantar-se
um dia sem saber o que fazer
Ter medo de suas lembranças.

É
proibido não rir dos problemas
Não lutar pelo que se quer,
Abandonar tudo por medo,

Não transformar sonhos em realidade.
É
proibido não demonstrar amor
Fazer com que alguém pague por tuas dúvidas e mau-humor.
É
proibido deixar os amigos

Não tentar compreender o que viveram juntos
Chamá-los
somente quando necessita deles.
É
proibido não ser você mesmo diante das pessoas,
Fingir que elas não te importam,

Ser gentil para que se lembrem de você,
Esquecer aqueles que gostam de você.
É
proibido não fazer as coisas por si mesmo,
Não crer em Deus e fazer seu destino,

Ter medo da vida e de seus compromissos,
Não viver cada dia como se fosse um último suspiro.
É
proibido sentir saudades de alguém sem se alegrar,

Esquecer seus olhos, seu sorriso, porque seus caminhos se
desencontraram,
Esquecer seu passado e pagá-lo com seu presente.
É
proibido não tentar compreender as pessoas,
Pensar que as vidas deles valem mais que a sua,

Não saber que cada um tem seu caminho e sua sorte.
É
proibido não criar sua história,
Deixar de dar graças a Deus por sua vida,

Não ter um momento para quem necessita de você,
Não compreender que o que a vida te dá, também te tira.
É
proibido não buscar a felicidade,

Não viver sua vida com uma atitude positiva,
Não pensar que podemos ser melhores,
Não sentir que sem você este mundo não seria igual.

Pablo Neruda

quinta-feira, 15 de agosto de 2013

Inês Lourenço - King Lear

KING LEAR

O tempo descobrirá o que a astúcia agora encobre;
a vergonha acaba sempre por escarnecer
daqueles que escondem crimes.
Prosperai, se puderdes.

Acto 1. Cena I (fala de Cordélia)
Tradução de Álvaro Cunhal

Viaja entre línguas, o tradutor
na noite do presídio. Masmorra vigiada
é ainda o cenário
que séculos não mudaram
nas tragédias do Poder. O filial amor
de Cordélia, tem no óculo viajante
de idiomas, uma outra trágica
filiação, que excede os tempos
da Bretanha e de Peniche: a demanda
total da liberdade.

Inês Lourenço

(Poema dedicado a Álvaro Cunhal)