sexta-feira, 29 de abril de 2022

(Pátria, lugar de exílio) 5ª Canção - Daniel Filipe

 

5ª canção

 

Ó sonho acontecido e decisivo!

Ó frio tempo de terror, ó duro

Ofício de manchar de sangue vivo

As esquinas de pedra onde o futuro

Se conjuga no modo imperativo!

 

Recusa a face, solidão errada!

Ébrio de esperança e juventude assomas

- Ó coração da pátria, minha amada! –

Ao meu olhar, por entre riso e aromas

De mirto e rosa-chá desabrochada.

 

Neste ano de 1962

primeiro de maio

ao começo da noite

podemos finalmente olhar no espelho a nossa muda imagem

sem temor nem vergonha

 

Na solidão do quarto, meu Amor

podemos pela primeira vez

deixar de recear futuros julgamentos

e as perguntas silenciosas nos olhos dos vindouros

esquecer a humilhação, o insulto sem resposta

que foi o nosso pão quotidiano e áspero

 

Agora poderemos ser de novo homens

livres, ainda que presos

mastigando a comida sem o sabor a lágrimas

antes com o sal da esperança

merecido tempero, paga justa da luta

 

Renegamos o passado maculado de angústias

esquecemos as pequenas diárias covardias

os negócios onde tudo se perde e até a honra

 

Neste primeiro de Maio de 1962

podemos finalmente sorrir sem amargura

 

Daniel Filipe

in Pátria, lugar de exílio, pp.13-35, Editorial Presença, 1974.

Longo poema de Daniel Filipe (1925-1964; poeta e jornalista nascido em Cabo Verde) e que remete para o 1º de Maio de 1962, dia muito importante na luta antifascista em Portugal.