terça-feira, 12 de agosto de 2008

Mistérios

INVESTIGAR a INVESTIGAÇÃO DESAPARECIDA e o MISTÉRIO das CARTAS de CONDUÇÃO

«Hoje o almoço é amanhã
Fernando Pessoa

Como é possível?!... Interrogou, exclamou, retitenciou, vociferou.

O meu amigo Elias tomava a bica no café do bairro por entre fumadores reprimidos, muitos dos quais, quando o empregado lhes servia o café tinham sobre a mesa o maço de tabaco e o isqueiro, bebiam um golinho de café e corriam até à porta para puxar a fumaça.

Foi neste ambiente de desconforto que o meu amigo Elias lançou o alerta: “Alguém viu por a anterior investigação da Autoridade da Concorrência às petrolíferas?”

Um dos fumadores que se encontrava à porta, fronteira da transgressão, e porque a palavraautoridade” o amedrontou, engasgou-se com o fumo, deitou de imediato o resto do cigarro para o passeio, vala comum de beatas, e, submisso, jurou que não tinha visto nada.

Patrão, empregados e toda a clientela ficaram em suspenso e o meu amigo Elias, mais calmo, esclareceu: “Vem aqui no jornal em letras gordas”: «A anterior investigação da Autoridade da Concorrência às petrolíferas “desapareceu”».

O senhor Justino, porteiro reformado da PJ, foi peremptório: “não tarda nada vão chatear a mulher da limpeza por ter amandado a papelada pró lixo.”

Desde 2004 que andam a investigar as três maiores petrolíferas, esclareceu o meu amigo Elias e segundo o anterior presidente da Autoridade da Concorrência a investigação podia originar um resultadoperverso”. O paralelismo de preços é evidente, esclareceu ainda o senhor ex-presidente, sem referir qualquer perversidade neste comportamento. Na investigação desaparecida constam neste relatório de actividade duas referências concretas relativas a 2004 e 2005.

pra mim, foi isso mesmo, disse o senhor Olímpio depois de emborcar um tintol. Isso mesmo o quê? Questionou o da PJ. Ó patrão, uma taça de branco ali pró da PJ, encomendou o Olímpio e prosseguiu:

Com quase cinco anos, a papelada devia andar com as folhas trocadas e como a Autoridade da Concorrência não acertava caquilo, pumba, pró caixote. Tá-se mesmo a ver.

Tá-se, tá-se, sublinhou o cliente que ficou junto à porta para puxar umas passas. E continuou: Mas ca ganda falta de cuidado!... Então e agora? O meu primo fanou uma carteira e foi de cana e se tivermos em conta os cinco euros que roubou em relação aos milhões que as petrolíferas nos têm gamado, vão levar três mil anos de prisa, como aquele tipo da ETA.

Alguém, entre a tosse que a gargalhada lhe provocou, não se cansava de repetir: Tá-se mesmo a ver! Tá-se, tá-se!

E o mistério das cartas de condução? Milhares de pedidos de carta de condução desapareceram misteriosamente; os elementos incluem fotografias, atestados e toda a documentação obrigatória. Segundo o presidente do Instituto de Mobilidade e Transportes Terrestres, seriam 73 mil, mais tarde rectificou para 46 mil e agora «estima» que sejam «apenas» seis mil.

Mas ca ganda desastre!, exclamou o reformado da PJ. E há muitos feridos?, perguntou o Olímpio.

Não! Mas lesados somos todos.

sexta-feira, 8 de agosto de 2008

O Museu do Manholas

O MUSEU DO MANHOLAS

Povo que dorme, tirania que desperta.”

O Arco de Sant’Ana – Almeida Garrett

Os ideólogos do terror são como a Hidra e se não permanecermos despertos e vigilantes estamos sujeitos ao que, tão sabiamente, Garrett sintetiza deste modo: “Povo que dorme, tirania que desperta!».

Os fascistas de serviço, de tempos a tempos, lançam a ideia da construção do museu do seu ídolo e patronoaquele que tinha na secretária as fotografias de Adolfo Hitler e Mussolini -- e porque nunca se sentirão satisfeitos, se conseguissem levar a cabo tão macabros intentos imporiam, mais tarde, a ida do pantasma para o Panteão e tudo aconteceria, obviamente, dentro da normalidade democrática, espezinhando embora a Constituição, caso não houvesse quem se impusesse a tais desígnios, ou seja, os que se mantivessem acordados.

Há, pois, quem se insurja quanto à concretização do museu consagrado a Salazar e, dentro dos moldes propostos, esta preocupação é saudável.

Mas o ditador não deve ser esquecido; as novas gerações devem saber quem foi e os sofrimentos que causou para que mais tarde, na base da ignorância colectiva, não possam impor a imagem beatificada daquele que personifica o fascismo por todos nós sofrido.

E porque nunca é demais recordar todos os malefícios por ele causados, considero que devíamos aproveitar essa magnífica oportunidade para criar um museu que recordaria os quarenta e oito anos de miséria e da repressão para a manter.

Seria um espaço amplo, onde fosse possível reproduzir as “frigideiras” e algumas celas do Tarrafal, com acesso a uma base de dados que permitisse um profundo conhecimento do “campo da morte lentaonde muitos foram assassinados, negando-lhes, muito simplesmente, os medicamentos, tais como o quinino, indispensável para suportar as febres palustres.

Deveriam também constar informações detalhadas sobre o analfabetismo por ele imposto – o povo devia saber ler e contar, dizia eleassim como a repressão generalizada a que não escaparam os intelectuais dignos que nunca se vergaram.

Um amplo pavilhão sobre a emigração. Quantas famílias desfeitas; quantos dos que emigraram a salto para fugir à fome e à guerra ficaram pelo caminho.

Um outro grande espaço sobre a guerra colonial. Dez mil mortos, quantas lágrimas, quanta dor e luto; quarenta mil estropiados, como contabilizar o sofrimento que ainda se matem; sem esquecer os duzentos mil afectados psicologicamente!

Por que não expor toda esta herança deixada por essa sinistra personagem?

Porque a repressão não se manifestou nas perseguições políticas dos assassinatos à bala, em plena rua, ou na tortura até à morte; a repressão descia ao quotidiano no beijo que era proibido dar; tão grave delito estava sujeito a coima tal como o portador de isqueiro que não tivesse licença.

Querem museu? Porque não?! Proporia mesmo que se criassem ecomuseus em cada Região, Província, concelho, cidade, bairro e se fizessem levantamentos fotográficos de como se encontravam os caminhos, a falta de saneamento básico, o acesso à água nos fontanários ou nascentes de chafurdo, a iluminação eléctrica que à maior parte dos lares chegou com o 25 de Abril: tudo o que pudesse recordar às populações a situação degradante em que tinham vivido seria exposto.

E ao museu as escolas periodicamente conduziriam os alunos em visitas de estudo para que as novas gerações melhor se apercebessem de todo o mal que nos fez e do estado miserável em que nos deixou a Pátria que nos recusou durante quarenta e oito anos.

terça-feira, 5 de agosto de 2008

Au! Au! Au!

A AUTO-ESTIMA

Au! Au! Au!


“Queremos mentiras novas”

(paredes que falam)

Um tanto autista, o senhor Presidente, com toda a autoridade que o cargo lhe confere e porque não nos auspicia dias melhores, faz um apelo à nossa auto-estima para enfrentarmos o auto-de-fé da nossa autofágica e agonizante economia.

Os portugueses devem auto-afirmar-se, demonstrar autoconfiança, deixar de se auto-agredir, auto-admirando-se. O trabalhador deve ser audaz, ao mesmo tempo que austero, e não pensar em aumentos.

Os autocratas, não sendo totalmente australopitecos, devem fazer autocrítica, seguida de autocensura por se autogovernarem.

Os trabalhadores precisam de se auto-incriminar, autopunir-se e autodestruir autodefesas, apagar o autodomínio e deixar-se de auto-elogios … ficando a “au!, au!, auto-estima”.

Sempre em autocontemplação pela auto-estrada da auto-suficiência, recusando a autognose, sem se autodefinir, os autodenominados e auriluzentes governantes auscultam o eco da sua auto-satisfação:

A auréola da EDP é cada vez mais aurífera; neste 1º semestre nos sacou 962,4 milhões de euros. Bem pode auto-elogiar-se por se autofecundar, com tamanha autodeterminação. E, em auto-reflexão, orgulhosa com o seu auto-retrato, não procurar automoralizar-se.

Os senhores da banca têm também razões de sobra para se auto-estimar e autopromover, ao auferir tão chorudas benesses. Os governantes perderam toda a autonomia e o auto-respeito ao auxiliarem este autêntico saque ao magro bolo, devorado por alguns.

Auto-estimem-se! Pedem-nos. Automotivem-se, auto-instruam-se, auto-ajudem-se, autoprotejam-se, automaticamente, como autómatos. Assim sendo, entramos em autogestão, com total autonomia, sem necessitar de governantes.

Sua excelência o autista Victor Constâncio, senhor de magnifico autodomínio, autor da autópsia da nossa economia assim como outros autóctones chegam-nos em automóvel de alta cilindrada e pedem-nos moderação nos gastos anunciando que para nós a coisa está preta.

Desejaram-nos muita au! au! Auto-estima, fazendo apelo à autopiedade e que nos mantivesse-mos sempre em auto-observação e forte autodisciplina.

- Era tão bom ter um autoclismo do tamanho da Barragem do Alqueva!...

Não era?

segunda-feira, 4 de agosto de 2008

Cochar Osório

MISE AU POINT
de
Cochat Osório
O que é que eles querem mais?
É tudo?
Levem tudo então.
Podem levar aquilo que puderem.
Levem também o resto.
Mas não!
O resto não.
Para levar o resto que sou eu.
Não é bem isso,
O que sobra daquilo que sou eu,
Não é também,
Só o que tenho a mais para ser eu...
Em conclusão:
Para levarem o saldo
Precisam da força que não têm,
Precisam da guerra que não têm
Precisavam de ter um coração.
Mas podem levar tudo.
E o resto
O eu.
Ficarei quieto, calmo, cego e mudo
Principalmente mudo.
Não serei eu.
Já sei,
Bem sei.
E não farei o mínimo protesto.
Com uma condição:
Deixem ficar apenas o vazio,
O silêncio concreto,
Espesso, opaco.
O silêncio que ofende,
Ou dá a esta vida
Um riso intencional
E áspero
E incorrecto
E frio
Mas é apenas quando se por acaso ri.
Hei-de fincar com força os dentes
Na polpa saborosa e farta do silêncio
Deste silêncio cheio de todas as matérias-primas
Que se gastam para fazer o nada,
E com o nada aberto ao meio, como um pão
A facada de (gula?) amordaçada
Numa fatia grossa de outro nada para recheio
Hei-de sentir a força alimentada
E a experiência do meu velho tempo gasto
Usado e gasto
Que (ensina?)
Sabor sem conteúdo,
Nada a fingir de tudo
Café sem cafeína
Mas é preciso
Hei-de tirar do nada a força de um sorriso,
Hei-de cumprir a minha sina!
Eu gosto do silêncio com silêncio
Cru e sem tempero
Estar nu, dá a noção exacta do princípio
Faz rebentar vontades de infinito
A certeza do zero.
Isto, porque o melhor é começar e não partir do meio.
É que o princípio é tudo o que virá depois
E ainda não veio,
É partir de viagem, sem saudades nem remorsos
E também sem bagagem.
Levem portanto tudo quanto existe.
Os livros velhos não...
Pelo menos os livros muito lidos não…
Os livros muito gastos pelos olhos não…
Esses que deram sumo a esta insaciedade que não finda
Podem servir-me de aconchego
Podem dizer o que me falta
Podem conter um resto de substância ainda.
Deixem ficar os livros muito lidos só.
Não!
Nem esses quero já
Não quero nada.
O que ficar na solidão
Terá um cheiro de velas apagadas
De compaixão e dó.
As palavras também, fiquem com elas
Hei-de arranjar palavras novas
Simples, rasgadas, abertas de par em par
Sobre a verdade
E o pensamento debruçado nelas
Puro, limpo, vivo
Sentir o ar fresco das manhãs
E a magia das noites de luar a entrar pelas janelas.
Palavras novas, sim, concretas
Que estruturem verdades conscientes
Que sejam palavras claras de gente.
Essas que andam ai nos jornais, nos discursos
Caricaturas de palavras sepulturas
Sarcófagos de ideias já passadas
Rótulos, formulas
Vazio impresso, colado em frascos de purgante
De bom-tom e bem pensante.
Essas palavras todas podem levá-las
Para encher o silêncio, o vazio e o nada.
Se não tiver palavras novas
Hei-de inventá-las
Palavras impelidas pela força imensa de serem
O que são e de saberem sempre aonde se dirigem
Com elas
Falarei a linguagem necessária
Aos contactos dos homens regressados à origem
O corpo. Também. Aguentará quanto puder
Projectores sobre os olhos
Jorros de água na nuca
Queimaduras na carne
Ou deixem-no de pé
Sem repouso de pé
Sem respeito de pé
Sem piedade e pé
Sonâmbulo de sono e de cansaço de pé
Farrapo humano a oscilar ( ? ) deixo de pé
E deixem-no estar de pé
Deixem-no estar a pé
Que falhe o coração ou a vontade
Ou vença, ou quebre, ou fale
Ou se liberte do martírio a rebentar os pés.
Pouco importa.
Levem tudo o que houver
Tudo quanto agarrar essa ganância desmedida
Mas é bom que não esqueça:
Que o regresso começa um tudo-nada antes da partida
Está no que fica
No que ninguém destrói
No que os outros recordam só por recordar
Nas pegadas, na lama que secou
Na saudade
Na angústia
Esta esperança de voltar
E a certeza de encontrar
Um lugar posto na mesa
E o direito de ficar.
Não sendo assim
Melhor é não voltar
E não bater às portas
Não acordar as velhas ilusões que já estão mortas
Melhor é ser um estranho para todos
Os que esqueceram
Os que não querem
Os que não lembram já.
Melhor é ser ausente e já presente
Partido para sempre e já chegado
Com o tempo cortado na ponta da indiferença
E partir pelo mundo ao deus-dará
E tentar renascer
Para estar só
É preferível estar só noutro sítio qualquer
E eu sei que fico sempre e hei-de voltar
O que deixei de mim e o que sobre de mim para falar
Só por isso volto
Porque não se partiu completamente
Porque não se quebrou o fio do contacto
Que une um homem sempre ao outro homem
E que lhe dá o sentido de conjunto
O lugar na multidão
O direito de ser gente
Eu sei que estas palavras gastas uma a uma
Palavras de um rosário de orações humanas
São o rasto indelével da passagem de um homem
Que vibrou e que viveu
São um resto de mim
O que sobra
O saldo a transportar
Direito de voltar e ser ainda um homem
Seja qual for o mundo que vier
Só por isso apenas porque fico
Não me importa que levem ou deixem o que querem levar
Basta o silêncio vazio e o nada
Basta uma noite triste e amargurada
Uma esperança, uma dúvida, um receio
Para saber que nada se perdeu
Voltarei nas palavras renascidas
Voltarei nas cadências revividas
Nas verdades gritadas
Nas canções abafadas
No ritmo, ritmo, ritmo
Neste oceano de ritmos
Que a minha voz criou, a razão embalou, e o coração já deu.
O que é que eles querem mais?
Tudo?
Levem tudo então
Voltem atrás
Procurem mais
Deitem a mão a tudo quanto há
Partam com a certeza consolada
De não deixar restos de nada
De que nada esqueceu
Há-de ficar apenas o silêncio
Esta ideia de ausência consumida
Esse resto de vida mutilada
Que é a vossa presença, que é o vosso progresso
Que é o vosso labéu
E então
O que brotar depois será o meu regresso
E quando grito meu
É porque eu sei que ele é também dos outros
Todos os que exigiram dignidade
Todos os que perderam até a vida
Todos os que o silêncio tornou esperança
Todos os que a ganância não venceu
O que brotar depois será sempre um regresso
E no regresso
Eu!