sexta-feira, 31 de janeiro de 2020

O Vagabundo do Mar - Manuel da Fonseca

O Vagabundo do Mar

Sou barco de vela e remo
sou vagabundo do mar.
Não tenho escala marcada
nem hora para chegar:
é tudo conforme o vento,
tudo conforme a maré…
Muitas vezes acontece largar o rumo tomado
da praia para onde ia…
Foi o vento que virou?
foi o mar que enraiveceu
e não há porto de abrigo?
ou foi a minha vontade
de vagabundo do mar?
Sei lá.
Fosse o que fosse
não tenho rota marcada
ando ao sabor da maré.
É por isso, meus amigos,
que a tempestade da Vida
me apanhou no alto mar.
E agora
queira, ou não queira
cara alegre e braço forte:
estou no meu posto a lutar!
Se for ao fundo acabou-se.
Estas coisas acontecem
aos vagabundos do mar.

(Santiago de Cacém, 15/10/1911-11/3/1993)
Poeta, romancista, contista e cronista, membro do Grupo Novo Cancioneiro,
presidente da Sociedade Portuguesa de Escritores.

segunda-feira, 27 de janeiro de 2020

O Filho do Homem - Vinícius de Moraes



O Filho do Homem


O mundo parou
A estrela morreu
No fundo da treva
O infante nasceu.

Nasceu num estábulo
Pequeno e singelo
Com boi e charrua
Com foice e martelo
 
Ao lado do infante
O homem e a mulher
Uma tal Maria
Um José qualquer.

A noite o fez negro
Fogo o avermelhou
A aurora nascente
Todo o amarelou.

O dia o fez branco
Branco como a luz
À falta de um nome
Chamou-se Jesus.

Jesus pequenino
Filho natural
Ergue-te, menino
É triste o Natal.




 

domingo, 26 de janeiro de 2020

“Sonho americano” - Jesús López Pacheco

 “Sonho americano”

... sí che la tema si volve in disio.
Dante, Inferno, III, 126

No alegre inferno dos consumidores
os condenados vivem no paraíso triste
da falsa abundância fugitiva.
Envolve-os uma bruma de desejos
insatisfeitos, mas sempre renovados.
São livres de comprar vendendo a alma
e,  escravos de suas pobres propriedades nunca suas,
não fazem a digestão sem hipoteca.
No crânio penetra-lhes, gota a gota,
uma secreta admiração pelos canalhas.
E todos são de todos dia-a-dia
corretos inimigos sorridentes
que nas primeiras páginas e nos écrans bebem
lentamente o desprezo por si mesmos,
uma desconfiança doente da vida
e o sonho sujo de viver sem ser humanos.

Jesús López Pacheco


“Sueño americano”

... sí che la tema si volve in disio.
Dante, Inferno, III, 126

En el alegre infierno de los consumidores
los condenados viven en el paraíso triste
de la falsa abundancia fugitiva.
Los envuelve una bruma de deseos
insatisfechos, pero renovados siempre.
Son libres de comprar vendiendo el alma
y, esclavos de sus pobres propiedades nunca suyas,
no hacen la digestión jamás sin hipoteca.
El cráneo les horada, gota a gota,
una secreta admiración por los canallas.
Y todos son de todos cada día
correctos enemigos sonrientes
que en las primeras páginas y en las pantallas beben
lentamente el desprecio por sí mismos,
una desconfianza enferma de la vida

y el sueño sucio de vivir sin ser humanos.

Jesús López Pacheco


sábado, 25 de janeiro de 2020

Trevas - JOSÉ MIGUEL SILVA

Trevas

E o pior é que chamamos liberdade
a um tapete que, rolante, já não ouve
a opinião dos nossos pés, que nos leva
para onde anuímos, alheados
aos mecânicos desígnios do poder.

Respiramos cadeados, consumimos
injustiça, damos duas várias voltas
ao risonho torniquete que nos serve
de chapéu e permutamos a cabeça
por um prato de aspirinas.

Os clássicos da vida sem tristeza
nem remorso (Cinderela, Varadero,
off-shore) iluminam o cenário em que
dormimos, inocentes como balas,
e nem sei como não somos mais felizes.

Para o centro do inferno conduzimos
este filho, o filho deste carro, cativados
p’lo direito conquistado de entregar
os nossos dias, como reses,
ao cutelo de despachos infiéis.

Viver é neste cerco uma questão
de prorrogar o desalento: cerramos
uma porta suicida, desatamos
a gravata, damos graças quando o gelo
na bebida se derrete devagar.

Se olhamos para o chão desaparece
o horizonte, se olhamos para o céu
ficamos sós. Não percebo como rimos
quando pedem que posemos para a foto
de família. Alguém nos enganamos.

Confundidos pelo surto da mentira,
leiloados pela última hipnose,
enxertados no pedúnculo da morte,
dizei-me se estes rostos de cartão amarrotado,
se esta alma como um campo pedregoso,

se estes pés afeiçoados ao espinho,
se isto que nós vemos é um homem.


JOSÉ MIGUEL SILVA
 

in Ulisses já não Mora Aqui (2002: 18-19)